Hospedes do Tempo
Hospedes do Tempo
Ela amanhecia jogando bolinhas de ouro para o alto
Ele ardia por ver incêndios pelo corredor
Eles adormeciam
Cada um em sua cama
Azul, sem lençol, sem nada
Eles comiam
Cada um no seu prato
Amarelo, sem sal, sem nada
Anoitecia
E amanhecia de novo
As bolinhas não iam dormir
Nem os incêndios
E os remédios eram cada vez mais fortes
Entorpecentes de gente
Anestesiavam a esperança, a família, os filhos
Anestesiavam o sexo
O medo, tudo
Menos a solidão
Ela não
Ela estava sempre ali
Sorrindo entre as bolinhas e o fogo
Terminava o dia
e ela estava pronta para abraçá-los
e amanhecia…
de novo.
(para Maria e J. S que estão internos numa das celas da loucura nesses hospícios brasileiros)
Conheci Maria e J.S no hospital Colônia João Machado. Em 2003 passei longos seis meses - durante todas as manhãs - entre os corredores, dormitórios e a salinha (salinha mesmo) de televisão. A minha visita diária era fruto de uma pesquisa para a especialização, que acabei abandonando no final do caminho, com quase toda a monografia escrita. Percebi naqueles meses, que o mundo é pequeno para os loucos. E eu ali todos os dias, amanhecendo com os internos, era também louca. E quem não é? Perguntava-me todos os dias, incansavelmente. Não consigo entender como ainda existe um sistema como esse de internamento. O Estado tenta esconder de todas as maneiras possíveis que o João Machado mudou, mas quando a gente entra ali, as situações se repetem e por incrível que pareça são as mesmas da época descrita por Foucaut na História da Loucura, quando relembra os tempos de 1.300 até 1.500 e pouco, quando a lepra foi antecedente da loucura. Veja só que coisa! Quando a lepra estava alastrada por toda Europa, a doença rendia uma boa fortuna. Apagado (ou quase) o leproso da memória, essas estruturas permaneceram. “Pobres, vagabundos, presidiários e “cabeças alienadas” assumirão o papel abandonado pelo lazarento” (Foucault –História da Loucura). Os manicômios passam então a existir… como existem hoje, mesmo depois de tanto sufoco para mudar essa estrutura bruta instalada para a doença mental. E pior que isso é que essa mudança do processo de desospitalização está sendo tão brutal quanto as grades de ferro que emolduram a loucura. Num sistema secular de prisão, o Brasil está diminuindo os leitos dos hospitais, numa tentativa de contornar o problema. Parece ironia, mas essa radical atitude de diminuição de leitos está causando a morte dos doentes mentais, essas que subiram ano passado 41%. (!) É preciso repensar a sociedade, o espaço de isolamento e a margem de liberdade, uma linha tênue. Não adianta voltarmos mais de 300 séculos em anos… é o mesmo que tentarmos ser índios de novo.
… Lembro que naquele espaço conheci uma menina de 19 anos, grávida, depressiva que recebia medicamentos todos os dias para aliviar duas dores. O que ninguém conseguia perceber é que não existia analgésico para elas e aquele não seria o melhor tratamento, o que ela precisava era de atenção, uma conversa, um abraço, um sorriso e não medicamentos. Outra senhora, a C. com 45 anos de idade e mentalidade de 5 anos, mora no João Machado desde os seus 18 anos. Ela foi estuprada no hospital, engravidou, teve uma filha e levaram a menina embora que hoje teria uns 9 anos de idade. Ela lembra da filha até hoje…
É hora de repensar nossos dias… nossas ironias…nossa sociedade tão estreita que não há espaço para o sonho. Será possível sonhar ainda? Queria eu poder ver incêndios e bolas douradas pelos ares, para colorir de vez esse país, esse mundo…cheio de sistemas estranhos e contornos.
Aos hospedes do tempo.
Michelle Ferret
Observadora das pequenas coisas, uma vela acesa, jornalista e tocadora de percussão nas horas vagas.
Fonte:colunas.digi.com.br
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