Cinema & Psicanálise - "Sonata de Outono"
Psicanálise em debate
Anos antes, Charlotte sacrificara a vida familiar em prol da carreira, deixando as duas filhas - Helena e Eva - a cargo do marido. Helena tem uma grave doença que a deixa incapacitada - tartamudeia e rasteja, sem qualquer autonomia. Eva se casara sem amor com um pastor mais velho e mora na casa paroquial de um pequeno povoado. Tivera um filho não planejado que morrera afogado aos quatro anos, algum tempo antes da visita de Charlotte. Fazia sete anos que mãe e filha não se viam e rapidamente as tensões explodem.
Eva acusa Charlotte de tê-los abandonado pela profissão. Mas também a ataca ao lembrar o período em que deixou a carreira para cuidar das filhas. Charlotte se assusta ao perceber a intensidade do ódio de Eva. Acuada, diz ter vivido uma infância infeliz, com pais pouco amorosos, o que a deixou incapaz de sentir afeto a não ser através da música. Confessa que nunca conseguiu se ver como mãe. Era frágil e desamparada demais; ansiava por uma mãe, não por uma filha.
Fracassada a tentativa de aproximação entre as duas, Charlotte parte e Eva lhe envia uma carta propondo uma reconciliação, que somente então acredita possível.
Ressalto alguns pontos:
1) Abandono materno - Suas conseqüências são mostradas em dois níveis: um menos incapacitante, representado por Eva, que apesar de ressentida e com impedimentos afetivos, conseguiu constituir-se como sujeito, tem uma identidade; outro, representado por Helena, cujo comprometimento a deixa sem identidade, amorfa.
2) Abandono versus presença excessiva da mãe - Eva se queixa simultaneamente do abandono da mãe e de seu oposto, sua presença invasiva. Sente que se despersonalizou para agradá-la, moldando-se ao que imaginava ser o desejo dela a seu respeito. Nas duas situações se revela a atitude narcísica da mãe - seja no abandono das filhas em nome de seus próprios interesses, seja, estando presente, na incapacidade de vê-las como seres autônomos, e não prolongamentos de sua personalidade.
3) Características do desejo - Os queixumes de Eva são reveladores dos impasses próprios do desejo humano - sua impossibilidade de satisfação. Eva queixa-se da ausência da mãe e também de sua presença, sentida como excessiva e invasiva. Por um lado, vemos o desejo de fusão com a mãe, o não suportar a castração simbólica que impõe a separação; por outro, o terror da fusão, o medo da excessiva proximidade com o outro, o que dá origem à fobia primária.
4) Recusa da função paterna/materna - Charlotte mostra uma dificuldade característica frente a assunção da função paterna/materna: o ódio que o adulto tem ao ter de abandonar o lugar protegido de filho/a e assumir o peso e a responsabilidade do lugar de mãe/pai.
5) Diferentes formas de lidar com o luto: o filme mostra o luto patológico, congelado de Eva pelo filho e o luto de Charlotte pelo companheiro, mais realístico, menos melancólico.
6) Enfrentamento com a verdade - Eva extravasa seu ressentimento contra a mãe, Charlotte expõe suas limitações emocionais e insuficiências frente à função materna. Ambas reprimiam tais idéias e sentimentos por temerem suas eventuais conseqüências destrutivas. Com alivio, constatam que ambas continuam vivas, não foram por eles destruídas. Isso possibilita que a relação entre as duas se restabeleça num patamar mais realístico e verdadeiro, com mútua compaixão.
7) Prole versus obra - Charlotte é uma mãe com características pouco comuns, é uma artista que não renegou seu talento. Seria esse um impasse incontornável para o artista? Como conciliar os cuidados com a prole e os cuidados com a obra?
(Versão mais condensada desse artigo foi publicada na revista
Bergman e uma conturbada relação mãe-filha.
Leitura psicanalítica de "Sonata de Outono" (1978)
por Sérgio Telles
Anos antes, Charlotte sacrificara a vida familiar em prol da carreira, deixando as duas filhas - Helena e Eva - a cargo do marido. Helena tem uma grave doença que a deixa incapacitada - tartamudeia e rasteja, sem qualquer autonomia. Eva se casara sem amor com um pastor mais velho e mora na casa paroquial de um pequeno povoado. Tivera um filho não planejado que morrera afogado aos quatro anos, algum tempo antes da visita de Charlotte. Fazia sete anos que mãe e filha não se viam e rapidamente as tensões explodem.
Eva acusa Charlotte de tê-los abandonado pela profissão. Mas também a ataca ao lembrar o período em que deixou a carreira para cuidar das filhas. Charlotte se assusta ao perceber a intensidade do ódio de Eva. Acuada, diz ter vivido uma infância infeliz, com pais pouco amorosos, o que a deixou incapaz de sentir afeto a não ser através da música. Confessa que nunca conseguiu se ver como mãe. Era frágil e desamparada demais; ansiava por uma mãe, não por uma filha.
Fracassada a tentativa de aproximação entre as duas, Charlotte parte e Eva lhe envia uma carta propondo uma reconciliação, que somente então acredita possível.
Ressalto alguns pontos:
1) Abandono materno - Suas conseqüências são mostradas em dois níveis: um menos incapacitante, representado por Eva, que apesar de ressentida e com impedimentos afetivos, conseguiu constituir-se como sujeito, tem uma identidade; outro, representado por Helena, cujo comprometimento a deixa sem identidade, amorfa.
2) Abandono versus presença excessiva da mãe - Eva se queixa simultaneamente do abandono da mãe e de seu oposto, sua presença invasiva. Sente que se despersonalizou para agradá-la, moldando-se ao que imaginava ser o desejo dela a seu respeito. Nas duas situações se revela a atitude narcísica da mãe - seja no abandono das filhas em nome de seus próprios interesses, seja, estando presente, na incapacidade de vê-las como seres autônomos, e não prolongamentos de sua personalidade.
3) Características do desejo - Os queixumes de Eva são reveladores dos impasses próprios do desejo humano - sua impossibilidade de satisfação. Eva queixa-se da ausência da mãe e também de sua presença, sentida como excessiva e invasiva. Por um lado, vemos o desejo de fusão com a mãe, o não suportar a castração simbólica que impõe a separação; por outro, o terror da fusão, o medo da excessiva proximidade com o outro, o que dá origem à fobia primária.
4) Recusa da função paterna/materna - Charlotte mostra uma dificuldade característica frente a assunção da função paterna/materna: o ódio que o adulto tem ao ter de abandonar o lugar protegido de filho/a e assumir o peso e a responsabilidade do lugar de mãe/pai.
5) Diferentes formas de lidar com o luto: o filme mostra o luto patológico, congelado de Eva pelo filho e o luto de Charlotte pelo companheiro, mais realístico, menos melancólico.
6) Enfrentamento com a verdade - Eva extravasa seu ressentimento contra a mãe, Charlotte expõe suas limitações emocionais e insuficiências frente à função materna. Ambas reprimiam tais idéias e sentimentos por temerem suas eventuais conseqüências destrutivas. Com alivio, constatam que ambas continuam vivas, não foram por eles destruídas. Isso possibilita que a relação entre as duas se restabeleça num patamar mais realístico e verdadeiro, com mútua compaixão.
7) Prole versus obra - Charlotte é uma mãe com características pouco comuns, é uma artista que não renegou seu talento. Seria esse um impasse incontornável para o artista? Como conciliar os cuidados com a prole e os cuidados com a obra?
(Versão mais condensada desse artigo foi publicada na revista
"VIVER mente & cérebro" - ano XIV, no.159, abril 2006)
Sérgio Telles - psicanalista e escritor
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