O Simbolismo segundo Jung e a Doutrina Secreta
por Carol Kolyniak Filho
A função semiótica ou a capacidade de reter, evocar e relacionar experiências sensoriais em forma de símbolos é, provavelmente, o traço distintivo fundamental do ser humano, em relação ao reino animal.
Assim sendo, o símbolo, ao substituir na mente a experiência em si mesma, permite ao ser humano elaborar, em seu intelecto, uma quantidade imensa de informações, através de operações mais ou menos complexas, que envolvem a codificação dos dados sensoriais em forma de palavras ou imagens, a sua memorização, a sua correlação com outros símbolos e o raciocínio.
Tomado nesse sentido genérico, é evidente que o símbolo está intimamente relacionado a todas as manifestações tipicamente humanas. Contudo, queremos aqui abordar um uso mais restrito do símbolo.
De modo geral, as grandes tradições culturais da humanidade são divididas em duas classes: A tradição oriental, caracterizada por uma abordagem direta da realidade, e a tradição ocidental, que aborda a realidade de uma forma simbólica. Na primeira, o indivíduo busca conheci. a essência dás coisas de forma direta, buscando aprofundar-se em seu interior, no aspecto espiritual da realidade, sem intermediação da experiência sensorial. Na segunda, o indivíduo projeta as suas qualidades internas no mundo sensível e procura conhecer a essência íntima das coisas através da manipulação dos símbolos que cria a partir da percepção do aspecto objetivo e material da realidade.
Considerando que a nossa mente, no presente estágio evolutivo, funciona através de símbolos, verificamos que toda a tradição cultural que pode ser transmitida verbalmente há de utilizar algum simbolismo, visto que a realidade apreendida de forma direta e espiritual é incomunicável de outra forma.
Assim sendo, procuraremos comparar duas abordagens diferentes da natureza e utilização do simbolismo como elemento de transmissão cultural.
De um lado, o estudo de Carl Gustav Jung, um dos mais eminentes psicólogos oriundos da escola psicológica analítica (fundada por Freud), pioneiro no estudo sério das manifestações religiosas e míticas, notadamente do seu aspecto simbólico. Jung fundou uma linha própria de análise e psicoterapia, estabelecendo relações entre investigação psicanalítica e tradições esotéricas ocidentais e orientais, especialmente a Alquimia e a Astrologia.
De outro lado, temos a abordagem contida na Doutrina Secreta, a mais vasta e complexa obra de ocultismo acessível ao público. Edita-da em 1888, em Londres e Nova Iorque, essa obra foi traduzida e reeditada várias vezes em diversos idiomas, inclusive em português. A edição atual contém seis volumes, constando de: I — Cosmogênese; II — Simbolismo Arcaico Universal; Ill — Antropogênese; IV — Simbolismo Arcaico das Religiões do Mundo e da Ciência; V — Ciência, Religião e Filosofia e VI — Objeto dos Mistérios e Prática da Filosofia Oculta. Escrita por Helena Petrovna Blavatsky, sob a orientação de dois Mestres de Sabedoria, essa obra requer um estudo aprofundado para a compreensão das idéias nela contidas, visto que está redigida em linguagem cifrada, correspondendo a um verdadeiro quebra-cabeça.
A ABORDAGEM DE JUNG
Para compreender o que Jung tem a dizer sobre o simbolismo, é necessário ter algum conhecimento de suas idéias básicas. Aos leitores que não têm qualquer informação prévia sobre o assunto recomenda-mos leitura suplementar para uma melhor compreensão do presente trabalho.
Um dos conceitos básicos da psicologia junguiana é o de arquétipo. Jung considera um arquétipo como uma tendência abstrata e genérica que está por trás de determinada manifestação. Assim, cada aspecto objetivo da realidade expressa um arquétipo. Por exemplo, os instintos sexuais são uma forma de expressão do arquétipo da reprodução.
Segundo essa visão, o Homem é o produto da manifestação de alguns arquétipos básicos: A persona é a máscara que apresentamos ao mundo, é a nossa couraça, aquilo que mostramos aos outros. O ego é o nosso autoconceito, aquilo que consideramos como sendo nós mesmos. A sombra é a soma das qualidades que não aceitamos em nós mesmos e, por isso, negamos, tornando-as inconscientes e projetando-as em outras pessoas. O animus é a soma das qualidades masculinas contidas na mulher, enquanto a anima é o lado feminino no homem. Finalmente, o self representa a totalidade da psique humana, o centro de crescimento e evolução de cada indivíduo.
Outra importante distinção que Jung faz na psique humana é entre o consciente — a soma dos símbolos e sensações disponíveis à nossa consciência — e o inconsciente, representado por todos os aspectos da experiência que o indivíduo não pode simbolizar, por qualquer razão. Há também uma distinção entre o inconsciente pessoal e o inconsciente coletivo, sendo este a soma de todas as experiências de uma coletividade humana, seja uma nação, uma tribo, uma raça ou mesmo toda a humanidade.
Segundo Jung, o homem tende a evoluir psicologicamente no senti-do de obter uma crescente integração entre o seu consciente e o inconsciente pessoal, num processo que ele chama de individuação. Esse processo envolve a progressiva tomada de consciência das manifestações dos arquétipos inconscientes da psique — a persona, a sombra, o animus ou anima e, finalmente, a relação consciente com o self, o centro vital do psiquismo. Posteriormente, há uma tendência para o indivíduo entrar em relação consciente com o inconsciente coletivo.
Nesse processo de tomada de consciência dos conteúdos do nosso inconsciente pessoal, os sonhos exercem um papel fundamental. Com efeito, os sonhos são a linguagem simbólica utilizada pelo inconsciente para comunicar-se com o consciente, e a capacidade de interpretar o simbolismo de nossos sonhos é fundamental para o processo de individuação. Através dos sonhos, o self nos mostra os caminhos que de-vemos seguir em nosso crescimento, podendo orientar muitas de nossas decisões no dia-a-dia.
Finalmente, Jung assinala que os símbolos que aparecem nos sonhos individuais também estão presentes nas manifestações culturais, como a literatura, as artes plásticas, a arquitetura, os mitos, os rituais etc.
Na abordagem junguiana, distingue-se um signo de um símbolo. Enquanto o primeiro refere-se a uma idéia particular e definida (por exemplo, o logotipo de uma empresa), o segundo desperta em nós idéias e emoções vagas e complexas (por exemplo, a cruz cristã). O símbolo é visto, também, como uma forma de expressão de arquétipos, tanto individuais como coletivos, e só pode ser interpretado no contexto individual ou cultural em que se apresenta. Jung condenou todas as formas de interpretação genéricas do simbolismo, afirmando que só uma pessoa especializada pode elucidar o significado de um verdadeiro símbolo.
A ABORDAGEM DA DOUTRINA SECRETA
A Doutrina Secreta é um obra de notável complexidade, na qual ciência, religião e filosofia são abordadas de forma comparada, formando um imenso painel de conhecimentos inter-relacionados que têm por objetivo transmitir, àqueles que tiverem qualificações para compreendê-la, a essência do conhecimento mais profundo acumulado por gerações de estudiosos do lado interno da vida. Em outras palavras, é uma obra de ocultismo por excelência e expõe de forma velada um cabedal cultural ao qual pouquíssimas pessoas têm tido real acesso, em todos os tempos.
Com dois volumes dedicados ao simbolismo, a D.S. distingue símbolo de emblema. O símbolo é a representação de uma idéia complexa mas bem definida, enquanto o emblema é um conjunto de símbolos inter-relacionados, capaz de sintetizar uma enorme soma de informações. Como obra de ocultismo, expõe o simbolismo enquanto meio de conservar e transmitir conhecimentos definidos em uma linguagem velada, que só pode ser integralmente interpretada por pessoas iniciadas nas suas chaves de interpretação — em outras palavras, por Adeptos.
O simbolismo ao qual a D.S. se refere é aquele que aparece em textos sagrados esotéricos e exotéricos e em monumentos e edificações como as pirâmides, os quais representam conhecimentos autênticos ou verdades.
Segundo a D.S., todo o símbolo autêntico tem diversos significados, que podem ser divididos em sete categorias: espiritual, astronômico, numérico, geométrico, antropológico, psicológico e fisiológico. Como cada uma dessas categorias tem sua própria chave de interpretação, um símbolo sagrado só pode ser totalmente compreendido por quem possuir as sete chaves. Dessas sete chaves, a espiritual e a fisiológica são as mais veladas, visto que a sua utilização por pessoas moralmente despreparadas pode gerar verdadeiras catástrofes.
Aliás, a razão fundamental para a transmissão de conhecimentos ocultos em forma simbólica é, segundo a D.S., o poder inerente à palavra falada, que pode invocar forças da natureza dificilmente controláveis. Para evitar a manifestação incontrolada dessas funções, aqueles que têm o conhecimento de sua natureza transmitem-no a outras (que devem estar preparadas para receber esse conhecimento de forma segura para si e para seus semelhantes) utilizando símbolos capazes de evocar um estado de consciência no qual a realidade é apreendida de forma não-verbal.
Comparemos sinteticamente as duas abordagens.
Quanto à ação do símbolo, vemos que a diferença está em que Jung afirma que o símbolo desperta idéias vagas, enquanto a D.S. afirma que as idéias evocadas são definidas.
Em relação à sua função, Jung considera o símbolo do ponto de vista da comunicação interna do indivíduo (inconsciente-consciente), ao passo que a D.S. considera o simbolismo do ponto de vista da comunicação interpessoal (indivíduo-indivíduo).
Ao considerar o contexto em que o simbolismo aparece, Jung abrange manifestações culturais e individuais, generalizando-o mais, uma vez que a D.S. trata de símbolos que aparecem em textos e edificações sagrados. Assim, a abordagem junguiana, nesse aspecto, parece mais abrangente.
No conteúdo do símbolo, parece que há a maior concordância, visto que Jung refere-se a arquétipos e a D.S. a conhecimentos definidos que têm um caráter de verdades imanentes. Até onde podemos compreender, um arquétipo é uma verdade, razão pela qual consideramos que as duas abordagens atribuem ao simbolismo o mesmo conteúdo. Referindo-se ao significado, percebemos uma concordância parcial, visto que ambos atribuem ao símbolo significados diversos. Contudo, a D.S. atribui ao simbolismo autêntico um significado mais complexo e preciso, caracterizando as categorias em que esse significado se estrutura.
Finalmente, ambos concordam em que a interpretação correta do simbolismo só pode ser realizada por indivíduos qualificados. Parece, porém, que as qualificações apontadas por Jung, ou seja, aquelas próprias de um psicólogo treinado para interpretar símbolos, são bem mais acessíveis do que a condição considerada pela D.S. — a de Adepto!
Para que se tenha uma idéia da aplicação dessas diferentes abordagens, vejamos como um símbolo determinado — a serpente — é explicado pelas mesmas.
Jung considera a serpente como um símbolo de transcendência, devido à sua natureza dual — é um ser que se arrasta, estando em contato estreito com a terra e com o ar. Assim, a serpente representa a transição de uma forma de consciência mais restrita — terra — para outra mais vasta — ar.
O mesmo símbolo, segundo a D.S., tem diferentes significados, dos quais identificamos alguns: a) — significado psicológico: a serpente significa a iniciação, devido ao mesmo motivo mencionado por Jung. Note-se que os Adeptos são chamados freqüentemente de Serpentes e Dragões; b) — significado fisiológico: a menstruação, pois a serpente troca periodicamente de pele, analogamente ao útero; c) — significado astronômico: quando aparece com sete cabeças, a serpente significa a constelação da Ursa Menor; d) — significado espiritual: quando aparece com sete cabeças, significa os sete Logos Planetários Cósmicos, reflexos da Luz Una, o Logos Cósmico. Dentro dessas quatro categorias, há outros significados que não podemos ainda identificar. Parece que por mais significados que encontremos para um símbolo, dentro de cada um dos sete campos mencionados, sempre há outros ainda mais sutis, que escapam à nossa compreensão devido às limitações de nosso intelecto.
CONCLUSÕES
As considerações precedentes nos levam a formular as seguintes conclusões:
1) — As duas abordagens não se contradizem nem se excluem, pois as discordâncias provêm de análises que partiram de diferentes pontos de vista válidos;
2) — A Doutrina Secreta dá ao simbolismo um significado mais vasto do que a abordagem junguiana, e
3) — A abordagem de Jung pode auxiliar na interpretação do aspecto psicológico do simbolismo universal, traduzindo-o numa linguagem mais acessível ao ocidental.
Evidentemente, as considerações e conclusões acima representam apenas uma introdução ao estudo comparado do simbolismo. Num trabalho tão breve, forçosamente um assunto tão amplo e complexo é abordado de forma muito genérica, limitando uma compreensão mais exata e aprofundada. Contudo, esperamos que essas linhas sirvam como estímulo intelectual ao leitor interessado no simbolismo, contribuindo em alguma medida para o seu estudo.
BIBLIOGRAFIA
Blavatsky, Helena Petrovna: A Doutrina Secreta. Vol. II e IV. Editora Pensamento. São Paulo 1980.
Jung, Carl Gustav: O Homem e seus Símbolos. Editora Nova Fronteira. Rio de Janeiro.
<< Página inicial