O Romance da Rosa - Guilherme de Lorris
Figura 1
Itinerário da mente a Deus
A Primeira parte de O Romance da Rosa
(c. 1225) -Guilherme de Lorris - (c. 1200-1230)
Primeira iluminura do manuscrito 387 do Roman de la Rose da Universidad de Valencia (final do século XIV). São duas cenas: à esquerda, a casa do poeta e seu despertar, exatamente como no texto; à direita, os primeiros passos de seu sonho, quando encontra o rio (uma alegoria do rio da vida), que o poeta segue até chegar ao jardim. Ele sente o desejo de sair porque é maio, mês da primavera no hemisfério norte, do início da vida, quando as árvores ficam verdes e os pássaros cantam melodiosamente, enfim, o momento ideal para o desabrochar do amor.
Alguns dizem que nos sonhos não existem senão engano e mentira, mas às vezes se podem ter sonhos que não mentem e que, com o passar do tempo, revelam-se verdadeiros. Para demonstrar isso, apresento um autor que se chamava Macróbio: ele não tomou os sonhos como brincadeiras, pelo contrário, escreveu uma obra sobre o sonho que teve o rei Cipião.
Apesar de tudo, se alguém pensa ou diz que é loucura e ignorância acreditar naquilo que sonhou, quem assim considera, que me tenha por louco, pois sei que o sonho adverte o bem e o mal que acontecerá às gentes. Além disso, são muitos os que durante a noite sonham coisas obscuras, as quais depois se apresentam com clareza.
No vigésimo ano de minha vida, idade em que o amor cobra imposto aos jovens, uma noite me deitei, como de costume, e dormi profundamente. E tive um sonho formosíssimo que muito me agradou: não houve nada que depois não tenha ocorrido tal e qual o sonho me mostrara. Agora desejo contá-lo em versos para agradar aos corações, pois assim me pede e ordena o Amor.
Se alguém deseja saber como deve ser chamado o Livro que agora inicio, ele se chamará O Romance da Rosa, e nele estão contidas todas as artes do Amor. O assunto é bom e novo; Deus queira que o receba com gosto aquela por quem inicio essa obra: ela vale tanto e é tão digna de ser amada que deve se chamar Rosa.
Parecia maio, faz cinco anos pelo menos. Sonhei que era maio, tempo de amor e de prazer, tempo em que tudo se alegra: os arbustos e as sebes se cobrem de folhas nesse mês. Os bosques recobram seu verdor, pois se mantiveram secos durante o inverno; e a mesma terra sente orgulho pelo orvalho que a molha, esquecendo a pobreza em que ficara durante o inverno. A terra se torna tão vaidosa que deseja usar um vestido novo, e isso não é difícil, pois ela dispõe de cem pares de cores: a erva, as flores violetas, azuis e de muitos tons distintos – tal é o vestido que vejo que utiliza a terra para embelezar-se.
Os pássaros que haviam permanecido calados enquanto fazia frio e quando o tempo era hostil e rigoroso, com a chegada de maio, com o bom tempo, ficam tão contentes que mostram com seu canto o prazer que têm no coração, e se vêem impulsionados a cantar. Então, o rouxinol se esforça com seus silvos e gorjeios e também o papagaio e a calhandra. É o momento em que os jovens começam a ficar contentes e a se enamorar, graças ao suave e doce tempo. Pois aquele que em maio não ama, tem um coração muito duro, pois ouve em vão os pássaros que cantam nos ramos.
Figura 2
Existem vários tipos humanos que não podem cruzar o muro do Jardim do Amor. São figuras alegóricas das atitudes que o poeta não deve ter se deseja se apaixonar. As figuras estão pintadas do lado de fora do Jardim para que todos conheçam quais são os vícios rechaçados pelo amor: todo aquele que deseja ingressar e formar parte da milícia do amor deve esquecê-los e nunca praticá-los. Algumas dessas alegorias são oriundas de Prudêncio, outras foram elaboradas por Guilherme de Lorris, que se baseou na tradição existente sobre a poesia amorosa. Da esquerda para a direita: a Felonia (o maior crime do mundo feudal, pois rompia com todos os compromissos da vassalagem), a Malquerença (de azul) e a Vilania (alegoria de forte conteúdo moral, pois era unida à avareza, à covardia e à infidelidade), o oposto da cortesia.
Nessa época tão agradável, em que todo ser vivo se esforça para amar, certa noite sonhei que me encontrava. Enquanto dormia, pareceu-me que era muito cedo. Levantei-me da cama, calcei-me e fui lavar as mãos. Depois, peguei uma agulha de prata de uma alfineteira formosa e bela, e me dispus a costurar. Então, me veio um desejo de sair da cidade para escutar os gorjeios dos pássaros que cantavam alegremente nos bosques pela chegada da nova estação. Assim, enquanto costurava o bordado, deleitava-me, escutando as avezinhas que cantavam nos jardins que começavam a florescer.
Alegre, contente e cheio de prazer, dirigi-me a um rio que ouvia próximo dali, pois não me ocorria um lugar melhor para me distrair do que as margens daquele rio. A água caía de uma colina próxima com força e ímpeto. Era clara e tão fria como a do poço ou da fonte. O rio era um pouco menor que o Sena, porém mais largo. Até então, eu nunca vira este rio tão agradável. Sentei-me para contemplar aquele lugar aprazível, refresquei-me e lavei o rosto com aquela água transparente e clara. O fundo era coberto e empedrado por pequenos cascalhos e a margem banhava um prado formoso e belo. A manhã era ensolarada, tranqüila e luminosa. Fazia um dia agradável. Através do prado, junto à margem do rio, fui descendo o curso de água.
Em pouco tempo deparei-me com um grande e alegre jardim completamente rodeado por um muro alto. A parte externa da parede tinha desenhos, esculturas e títulos ricamente pintados. Com grande prazer contemplei essas figuras e imagens, que irei contar e descrever tal como as recordo.
No centro vi a Malquerença. Ela dava a impressão de estar triste, aflita e de ser perversa; parecia evidente que desejava provocar e molestar, porém se mantendo oculta a todos. Parecia uma mulher pobre, porque não estava bem vestida. Tinha o semblante enrugado e franzido, e seu nariz era chato. Essa horrível e depreciável mulher cobria-se com um véu.
Ao seu lado esquerdo havia uma figura de aspecto diferente; li o nome que tinha na cabeça: chamava-se Felonia.
Figura 3
Para poder desfrutar da vida cortesã simbolizada pelo Jardim do Amor seriam necessárias certas qualidades morais, além de dons naturais e meios de fortuna suficientes. Esta é a razão pela qual às figuras ficam do lado de fora do Jardim. Aqui o poeta contempla a Avareza, como no texto, com uma bolsa de moedas em uma das mãos e as roupas rasgadas.
À direita, vi uma imagem que tinha o nome de Vilania: era semelhante às outras duas, tanto no aspecto quanto na forma. Como era insolente, dava a impressão de ser uma má e louca criatura, disposta a causar danos e a falar mal de todos. Eu saberia pintar e retratar muito bem o que fazia tal imagem, pois ela parecia realmente uma coisa vil, como se estivesse cheia de injúrias e fosse uma mulher pouco disposta a prestar honra a quem devia.
A seguir, estava pintada a Cobiça, aquela que incita as gentes a tomar, a não dar nada, a juntar grandes riquezas; é quem faz com que muitos emprestem com usura, pois está sempre querendo reunir e juntar bens; é quem aconselha aos ladrões e aos malfeitores para que se ponham em movimento. Ela é um grande erro e uma grande desgraça, pois através dela muitos acabam sendo enforcados. A Cobiça é quem faz tomar as coisas dos outros, roubar, usurpar e vender mal, diminuir e enganar nas contas; é a criadora dos trapaceiros, dos charlatães que, seguindo seu conselho, privam donzelas e jovens de suas justas heranças. Esta imagem tinha as mãos encurvadas e retorcidas – é lógico ser assim, pois a Cobiça sempre se esforça em tomar o bem alheio sem escutar razões, já que gosta demasiadamente do que é dos outros.
Ao lado da Cobiça havia outra figura, chamada Avareza: era feia, suja, magra, fraca e de má aparência, verde como um alho-poró, tão pálida que parecia doente e morta de fome ou que vivia somente de pão amassado com água sanitária forte e abrasadora. Além de estar fraca, vestia-se pobremente: trazia uma cota velha, destroçada e cheia de remendos, como se houvesse sido jogada aos cachorros. Ao seu lado, pendurada em uma fraca presilha, estava seu manto e uma cota parda. O manto não era de boa linhagem: era de má qualidade, desgastado, de lã negra, aveludada e pesada. A cota devia ter mais de vinte anos, mas a Avareza não se preocupava com suas vestes. Ela não sentiria muito por esse traje, ou porque estava usado, ou porque já não lhe servia, já que necessitaria de um vestido novo; pois a Avareza, aquela que não gosta de gastar, prefere passar grande penúria a fazer isso.
Figura 4
A Tristeza, representada por uma jovem mulher enferma que arranhou o próprio rosto, descabelou-se e feriu os seios à mostra com as próprias unhas.
Ela havia escondido na mão uma bolsa costurada e fechada com tanta força, que se passaria um bom tempo antes de se tirar algo dela, embora isso lhe importasse pouco, pois ela não tinha a intenção de tirar nada da bolsa.
A seguir, estava pintada a Inveja, que nunca havia sorrido em toda a sua vida, e nunca havia se alegrado por nada, a não ser por ter visto ou escutado alguém contar uma grande desgraça: nada a agradava tanto quanto a dor e a calamidade. O que ela mais gosta é de ver que um grande infortúnio caiu sobre uma pessoa próxima. Então, ela alegra seu coração da mesma forma quando vê uma grande linhagem ser destruída ou insultada. Contudo, se contempla alguém que cresce em honra graças ao seu bom senso e por seus próprios méritos, isso é o que mais lhe fere, pois se entristece quando acontece algo bom.
A Inveja é tão cruel que não mantém a lealdade com seus companheiros e não admite companheirismo; ela é inimiga de todos os seus familiares, pois certamente não deseja o bem nem para o seu pai. Contudo, é certo que ela paga caro por sua maldade, pois sofre tanto e sente tanta dor quando as pessoas fazem o bem, que pouco falta para se desmanchar. Desse modo, seu coração traidor a golpeia, e então Deus e os homens podem se vingar.
A Inveja nunca deixa de falar mal dos outros: se conhecesse o mais nobre de todos que existe desse lado do mar ou do outro, ela tentaria ofendê-lo; e se fosse um homem tão íntegro que ela não conseguisse fazê-lo cair de seu mérito, nem derrubá-lo, ao menos lhe agradaria diminuir seu valor e sua honra, falando dele o menos possível.
Na pintura vi que a Inveja tinha um olhar mau, pois não olhava de frente, somente de soslaio, dissimulando; esse era um mau costume seu, não contemplar nada abertamente, pelo contrário, só fechava um olho com desprezo, desdenhando e ardendo de raiva ao ver alguém nobre, formoso ou gentil, querido e estimado por todos.
Figura 5
A Inveja, com a longa mão direita no coração para mostrar o sofrimento que sente quando se faz o bem. Repare que as imagens crescem em tamanho à medida que são apresentadas, indicativo da grandeza do mal que a Inveja provoca na Terra.
Junto à Inveja, bem próxima dela, a Tristeza estava pintada no muro: pela cor, parecia que levava luto no coração, e dava a impressão que padecia de icterícia Avareza não a superava nem em palidez, nem em fraqueza, pois a aflição e a pena, a preocupação e os enjôos que sofria dia e noite haviam feito com que perdesse a cor e ficasse magra e pálida. Ninguém nunca teve um sofrimento e uma dor semelhantes a que ela parecia ter. Acredito que ninguém seria capaz de fazer com que ela se alegrasse; ela tampouco queria se regozijar e aliviar com nada a dor que sentia em seu coração, pois o tinha demasiadamente triste, e seu penar havia se enraizado profundamente.
Bem se via que estava aflita, pois há pouco tempo havia arranhado seu rosto, dilacerando-o em muitos lugares, como quem está triste. Tinha os cabelos despenteados e soltos sobre o colo, revolvidos pela pena e pela aflição. Estou seguro que ela chorava amargamente: quem quer que a visse, por mais duro que fosse, sentiria uma grande misericórdia por ela, que continuamente se arranhava, se golpeava e se maltratava com os punhos.
A infeliz, a pobre, mostrava bem a sua dor e não se preocupava em se alegrar, em bailar ou dançar, pois quem tem o coração aflito sabe que não tem vontade de se deleitar com a dança e com o baile. Aquele que está triste não se abranda com a alegria, pois o gozo e a aflição lhe são contrários.
Logo depois, estava retratada a Velhice, um passo atrás do lugar que deveria ocupar, pois ela mal se mantinha em pé, de tão velha e maltratada. Sua beleza havia murchado, tornara-se muito feia. Tinha a cabeça velha e branca, como se os cabelos tivessem florescido. Meu Deus, sua morte não seria uma grande perda nem uma grande desgraça, pois todo o seu corpo havia secado e se enrugado pela idade. Seu rosto, cheio de rugas, outrora fora suave e liso; agora estava repleto de cicatrizes. Suas orelhas eram cabeludas e não lhe restava nenhum dente, pois havia perdido todos. Era tão velha que parecia que não podia andar quatro passos sem a ajuda de muletas.
O tempo, que corre noite e dia sem pausa nem repouso, passa por nós tão silenciosamente que por um momento acreditamos que ele se deteve, quando na verdade nunca descansa nem deixa de correr, de forma que não se pode pensar que existe o presente; e, se perguntares a um homem douto nas letras, antes que ele tenha respondido, haverá transcorrido três tempos. O tempo, aquele que não pode ser detido e que sempre avança sem voltar, como a água que flui sem que regresse uma gota; o tempo, a quem ninguém resiste, nem o ferro, nem qualquer outro objeto duro; o tempo, que faz com que as coisas cresçam depressa, que rapidamente cria e tudo destrói e faz apodrecer; o tempo, que envelheceu nossos pais, que envelheceu prematuramente reis e imperadores, e que todos nós tornará velhos e adiantará nossa morte; o tempo, que tem o poder de envelhecer todas as coisas, a havia envelhecido tanto que, em minha opinião, fez com que ela não pudesse amparar-se sozinha, e assim, a fez retornar à infância, pois não tinha mais capacidade, nem força e juízo que um menino de um ano de idade. Embora, segundo creio, ela tivesse sido discreta e culta quando estava na idade madura, nada havia lhe restado e ficara atordoada.
Figura 6
A Velhice usa um cajado para se apoiar e tem o corpo recoberto por um longo manto azul, pois sente frio. Ela é o exato oposto do amor, que é uma paixão ardente. Portanto, a Velhice também está proibida de entrar no Jardim do Amor.
Ela trazia uma capa forrada – se não me recordo mal – com a qual se abrigava muito bem e cobria seu corpo. Devia ser um manto quente, caso contrário, teria morrido, pois os velhos sentem frio, sabei-o, tal é sua natureza.
Atrás dessa imagem havia outra representada, e que manifestava claramente sua falsidade: chamava-se Hipocrisia. É ela que, mantendo-se oculta, quando ninguém pode se defender, faz todo o tipo de dano, sem nunca se preocupar. Externamente, parece mover-se pela compaixão, tem aspecto simples e piedoso, e parece uma santa criatura; porém, sob o céu não há desgraça que em seu íntimo não tenha imaginado.
A imagem que a representava se parecia muito com ela, pois tinha um aspecto simples: estava calçada e vestida como uma mulher devota; na mão levava um saltério e, sabei-o, esforçava-se em oferecer a Deus falsas orações, invocando santos e santas. Não estava alegre, nem contente, parecia inclinada somente a fazer boas obras. Vestia um tecido áspero de lã e não era gorda, pelo contrário, dava a impressão de que estava cansada de jejuar, por causa de sua cor pálida e moribunda.
A ela e aos seus estava proibida a entrada no Paraíso, pois segundo o Evangelho, este tipo de gente afina seu rosto para ser enaltecido na cidade. Por isso, por obterem um pouco de vanglória, serão privados de Deus e de Seu reino.
Por último, estava retratada a Pobreza, que carecia de bens e que havia sido pintada desnuda como um verme, pois havia vendido seus vestidos. Se a estação fosse outra, penso que morreria de frio, pois tinha somente um saco velho forrado com pedaços de pele – tal era sua cota e seu manto – não trazia mais nada para vestir e tiritaria muito de frio. Ela se mantinha um pouco afastada das demais, como um pobre cão num canto; encolhia-se e se cobria, pois qualquer coisa miserável sempre sente vergonha e despeito, esteja onde estiver. Maldita seja a hora em que foi concebido um pobre! Ele nunca será bem alimentado, nem bem vestido e calçado, ninguém o quererá, e ele não receberá elogios!
Tal como contei, essas eram as imagens que se viam por toda a parede, pintadas de ouro e de azul. O muro era alto e tinha uma forma quadrada; dentro havia um jardim onde ninguém nunca havia entrado, nem mesmo um pastor. O lugar era magnífico. Eu ficaria muito agradecido se alguém me levasse lá para dentro mediante escadas ou escadarias, pois, em minha opinião, não se poderia encontrar um gozo ou uma alegria semelhantes às que havia naquele jardim. O lugar não estava disperso nem era tacanho para abrigar aves. Nunca houve um espaço tão rico de árvores e de pássaros cantores – ali havia três vezes mais que em todo o reino da França.
Figura 7
Ociosa é o primeiro personagem que o poeta conhece e que vive no interior do Jardim. Ela tem um espelho em uma das mãos, que pode ser associado à luxúria, já que é um atributo de Vênus, e Ociosa é sua representação, embora na tradição de André Capelão (séc. XII), a luxúria está descartada do amor cortês. Quando Ociosa mostra o espelho ao poeta, está lhe ensinando o reflexo do mundo que existe dentro do Jardim, sendo, portanto, também a representação da água (o rio do início do poema). Além disso, associa-se com o mito de Narciso, que surgirá adiante no texto. Com a aparição de Ociosa, o poeta se insere na tradição da poesia amorosa, pois Ovídio diz que devemos fugir da ociosidade para evitar as flechas de Cupido, idéia adotada também por André Capelão.
Era muito agradável ouvir a harmonia de seus cantos, pois alegravam todo o mundo. Regozijei-me tanto que, se estivesse livre, não aceitaria cem libras para não ver a reunião dos pássaros que ali dentro cantavam danças de amor e notas agradáveis, formosas e belas, com muito gozo. Que Deus os salve!
Ao ouvir o cantar dos pássaros, comecei a pensar de que maneira ou com que astúcia eu poderia entrar no jardim. Não encontrei nenhum lugar para passar: sabeis que ignorava se havia uma entrada, um caminho ou uma trilha; não havia ninguém que pudesse me guiar, já que estava só. Encontrava-me derrotado e muito triste, até que, por fim, entendi que em um pomar tão formoso como aquele não haveria uma porta, escada ou qualquer outra forma de entrada. Então dei a volta muito depressa ao redor da construção e do muro quadrado, até que encontrei um portão pequeno e estreito que estava bem fechado. Não havia nenhum outro lugar de entrada. Parei de procurar e chamei à porta. Chamei e bati bastante; muitas vezes prestei atenção se ouvia chegar alguém.
Por fim, uma donzela nobre e formosa abriu o portão, que era de carpelo. Essa donzela tinha os cabelos loiros como uma bandeja de cobre, seu rosto era mais doce que um pequeno pintinho, sua fronte brilhava, tinha as sobrancelhas arqueadas e bem separadas, amplas e bem proporcionais, seu nariz era bem-feito e seus olhos eram vivos como os de um falcão. Para dar inveja aos loucos, tinha um vigor doce e agradável, um rosto branco e escarlate, uma boca pequena e carnuda e uma pequena cova no queixo; seu colo era bem proporcional e a pele era mais suave que um velocino, sem cravos ou espinhas – daqui até Jerusalém não havia mulher com o colo mais charmoso, pois o dela era reluzente e muito suave ao tato; seu pescoço era tão branco que parecia como a neve recém caída sobre os galhos das árvores.
Seu corpo era elegante e esbelto: era inútil buscar em outras terras um corpo feminino mais belo. Trazia uma formosa auréola de seda e ouro. Nunca houve uma donzela tão elegante, nem que se vestisse melhor; bem a vi e a contemplei. Sobre a auréola de seda e ouro ela trazia uma guirlanda de rosas frescas; tinha na mão um espelho, e na cabeça um rico fixador prendia seu cabelo trançado. Para dar maior elegância, as duas mangas de seu vestido estavam costuradas, e para evitar que suas mãos brancas se sujassem, ela usava luvas também brancas. Vestia uma cota de rico tecido verde de Gand, com um cordãozinho bordado em volta. Por seu aspecto, bem se via que tinha pouco o que fazer. Penteando-se, vestindo-se e preparando-se: era assim que passava o dia. Para ela, fazia sempre bom tempo e era sempre maio, pois nada a preocupava nem a inquietava, a não ser se arrumar com elegância.
Quando a donzela de corpo formoso abriu o portão, com bons modos lhe dei graças, e lhe perguntei como se chamava e quem era. Ela não se mostrou altiva nem desdenhosa ao responder:
– Sou chamada Ociosa por meus conhecidos. Sou uma mulher rica, afortunada, e levo uma vida agradável, pois com nada me ocupo senão gozar e desfrutar, pentear-me e fazer-me tranças. Sou amiga íntima de Lazer, o jovem, o agradável, dono deste formoso jardim: ele trouxe da terra de Alexandria as árvores que aqui estão plantadas. Depois, quando elas cresceram, fez construir ao redor do pomar o muro que vistes e ordenou que pintassem na parte externa as imagens que há, que não são nem belas, nem agradáveis, mas dolorosas e tristes, tal como acabais de ver. Muitas vezes vêm aqui para se divertir e ficar à sombra. Lazer e seus seguidores, que vivem em contínuo gozo e alegria. Agora Lazer deve estar aqui dentro, escutando o canto dos rouxinóis, dos melros e de outros pássaros; ele se entretém e se distrai nesse pomar com suas gentes. Não poderia encontrar um lugar mais belo, nem um lugar melhor para desfrutar. Sabeis que as gentes mais formosas que poderíeis ver são os companheiros de Lazer, que os traz a seu lado e os guia.
Quando Ociosa terminou de falar, eu, que escutava com atenção, disse-lhe:
– Senhora Ociosa, não me leve a mal: já que Lazer, o belo, o nobre, está aqui nesse pomar com suas gentes, gostaria, se pudesse, de estar em sua reunião nessa mesma tarde. Tenho que ir, pois penso que a visão deve ser agradável e creio que os participantes serão corteses e bem educados.
Sem dizer mais nada, entrei no pomar pela porta que Ociosa abrira. Quando estive dentro, senti-me alegre, contente e gozoso; encontrava-me como no Paraíso Terreno, estejais certo. O lugar era tão agradável que parecia coisa própria do espírito e, segundo me parecia, em nenhum paraíso se poderia estar tão bem como naquele pomar que tanto me aprazia.
Figura 8
Ociosa, coroada, segura o poeta pelo pulso e assim ele entra no Jardim do Amor (na cena, a figura do poeta se repete para demonstrar os dois momentos). Nesse segundo momento (à direita), ele ingressa no mundo cortês, já que o Jardim é a representação ideal de um microcosmos: tanto a vegetação quanto os pássaros são manifestações do amor, e o Jardim é o locus amoenus da literatura medieval, reflexo imperfeito do Paraíso, natureza domesticada e refúgio do mundo nobiliárquico. A tradição literária do ocidente registra a estória desse tema, desde a Bíblia até André Capelão, passando por Guilherme de Lorris (Altercatio Phyllidis et Florae).
Havia numerosos pássaros cantores reunidos por todo o jardim: em um lugar havia rouxinóis, em outro, gaios e estorninhos; e, em outros lugares, havia bandos de pombas-rolas e estrelinhas-de-poupa, de pintassilgos, de andorinhas, de cotovias e de chapins. Mais adiante, havia muitas cotovias que já estavam cansadas de competir no canto e, com elas, havia melros e tordos que tentavam superar os outros pássaros com seus silvos. Em outro lugar, havia papagaios e muitas aves que, nos jardins e bosques que habitavam, deleitavam-se com seu belo canto.
Os pássaros de que estou falando faziam um bom trabalho, pois cantavam como se fossem anjos espiritualizados e, ao ouvi-los, eu me alegrava, pois nenhum homem vivo ouviu antes uma melodia tão doce. Era um canto tão agradável e formoso que não parecia de pássaros, e sim com o canto das sereias do mar, chamadas assim por suas vozes puras e doces.
Os passarinhos estavam atentos ao canto, pois esteja seguro de que não eram nem aprendizes nem ignorantes. Ao ouvi-los e ao ver o verdor do lugar, fiquei muito alegre, mais do que havia ficado até então; e, pela amenidade do jardim, me enchi de gozo a tal ponto que me convenci de que Ociosa me havia servido bem, proporcionando-me tal bem-estar. Eu devia tê-la como amiga, já que me abriu a porta daquele bosque cheio de árvores.
E agora, conforme meus conhecimentos contar-vos-ei tudo o que aconteceu. Mas antes de tudo, dir-vos-ei o que Lazer estava fazendo e quem eram seus acompanhantes, mas sem me estender em demasia. Depois, descrever-vos-ei o bosque sem ocultar nada. Não posso fazê-lo todo de uma vez e, por isso, vou contar ordenadamente, para que não possam me censurar nada.
Os pássaros cumpriam seu dever doce e agradável, cantando lais de amor e canções corteses, uns com voz alta, outros em tom baixo. O canto não era nada depreciável, e a melodia conseguiu que a doçura voltasse a brotar em meu coração. Depois de escutar um pouco os pássaros, não pude resistir aos meus desejos de estar diante de Lazer para ver seu aspecto e contemplar sua pessoa. Sem deter-me, fui à direita, por uma pequena trilha cheia de erva-doce e de menta, e não demorei em encontrar o Lazer, pois estava no bosquezinho em que me meti. Ali estava se distraindo com pessoas de tanta beleza que, ao vê-las, perguntei-me de onde poderiam ter vindo, pois eram como anjos com asas: nunca vi jovens mais belos. Puseram-se a bailar ao coro e ao som das canções que lhes cantava uma dama chamada Alegria.
Figura 9
Nesta cena há alguns dos personagens que vivem no Jardim do Amor. Todos estão dançando (como o grupo à esquerda, liderado pelo Deus do Amor, ou a dupla acima, também à esquerda) ou tocando um instrumento. A música representa a luxúria, assim como o macaco acorrentado aos pés do jogral (as correntes podem significar que a luxúria está controlada pelos padrões sociais do amor cortês). A luxúria também se manifesta - e mais claramente - nas sensuais carícias e beijos trocados entre duas damas (uma de azul, outra de vermelho).
Alegria cantava bem e de forma muito agradável; ninguém entoaria os estribilhos melhor nem com mais elegância; ela cantava extraordinariamente bem, com voz clara e pura; e, além disso, movia-se com habilidade, lançava os pés de forma educada e surgia no momento oportuno: estava acostumada a cantar sempre a primeira – e esse era o trabalho que fazia com mais gosto.
Ali vós os veríeis dar voltas, dançando com graça em belos círculos sobre a grama fresca. Ali, vários flautistas, menestréis e jograis cantavam ritornelos e canções de Lorena, pois, de todos os reinos, é em Lorena onde se fazem as mais belas canções. Havia inúmeras mulheres que tocavam as castanholas e o pandeiro com habilidade, que não paravam de lançar o pandeiro ao ar e o pegarem sem nunca errar. Lazer fazia com que as moças, muito formosas, dançassem no meio da roda. Elas vestiam somente a cota e tinham seus cabelos presos com uma trança. Não é necessário cantar a elegância com que dançavam: uma se aproximava da outra e, quando estavam juntas, aproximavam suas bocas parecendo que se beijariam no rosto. Sabiam se mover muito bem.
Não sei mais o que vos dizer; por mim, nunca sairia dali enquanto aquelas gentes continuassem com seus bailados e danças.
De pé, contemplei a roda até que veio a mim uma alegre dama: era Cortesia, apreciável e afável. Que Deus a livre de todo o mal!
Docemente ela se dirigiu a mim:
– Bom amigo, que vós fazeis aqui? Venhais e tomais parte na dança conosco, se assim quiserdes.
Sem tardança nem demora juntei-me à roda, contente por Cortesia ter suplicado e pedido que bailasse, pois estava desejoso e com vontade de dançar, embora não me atrevesse a fazê-lo. Assim, contemplei os corpos, as formas, os rostos, o aspecto e as maneiras dos que estavam dançando – e vou descrevê-los.
Lazer era belo, alto, esguio: não encontrareis homem mais formoso. Seu rosto era como uma maçã, rosado e branco em volta; era elegante e de boa aparência; tinha os olhos verdes, a boca formosa, o nariz bem feito, reto; seus cabelos eram louros, encaracolados; tinha os ombros largos e a cintura estreita: parecia uma pintura, de tão formoso e elegante que era e por ter os membros bem formados. Em seus movimentos era hábil e ágil; não conhecerás ninguém mais ligeiro; não tinha barba nem bigode, mas um buço incipiente, pois era um jovem rapaz. Trazia seu corpo vestido com um tecido de seda bordado com pássaros, todo lustrado de ouro; seu traje tinha muitos adornos, pois estava elegantemente alisado e cortado em vários lugares. Estava calçado com grande perfeição, com sapatos de cadarço, feitos sob medida. Por amor e como uma forma de agradecimento, sua amiga lhe havia feito uma coroa de rosas que lhe caía muito bem. Sabeis quem era sua amiga? Era Alegria, que não odiava ninguém, sempre estava contente e cantava muito bem; desde que tinha somente sete anos ela lhe havia declarado seu amor.
Lazer a segurava pelos dedos no meio da roda e ela também o segurava. Faziam um bonito par, pois ele era formoso e ela também. Pela cor de sua delicada pele, que se poderia ferir com um pequeno espinho, ela parecia uma jovem rosa. Tinha a fronte formosa e ampla, sem rugas; sobrancelhas morenas e arqueadas; olhos alegres e tão vivos que sempre começavam a sorrir antes de sua pequena boca. Não sei o que dizer de seu nariz: não se poderia fazer um melhor com cera. Tinha a boca pequenina e sempre disposta a beijar seu amigo; sua cabeça era loura e reluzente. Que mais vos posso dizer? Ela era bela e elegante; enfeitava-se com um fio de ouro, e trazia um chapéu novo, de seda e de ouro. Eu, que tenho visto muitos penteados, nunca vi um tão bem feito. Vestia seu corpo e o cobria com um tecido de seda dourado: sentia-se orgulhosa por seu amigo usar um tecido igual.
A seu lado estava o Deus do Amor, que a seu desejo distribui paixões. É ele quem faz justiça com os enamorados, é ele quem abate o orgulho das gentes, fazendo do senhor, servidor, e das damas, criadas – quando as encontra demasiado soberbas.
Por seu aspecto, o Deus do Amor não parecia um rapaz vulgar, e era apreciado por sua beleza. Para contar como estava vestido, eu temo estar em dificuldades, pois não trazia traje de seda, mas de florzinhas, feitas por delicados amores. Era um vestido de xadrez adornado por todas as partes com losângulos, aves, leões, leopardos e outras classes de animais; para maior abundância de cores, tinha muitos tipos de flores, que haviam sido colocadas ali com grande arte.
Não havia flor que nascesse no verão e que não estivesse ali: giesta e violeta, flores brancas e negras, amarelas, azuis e verdes; todas estavam ali, tal era sua variedade. Em algumas partes estavam misturadas pétalas de rosas grandes e cheias. Na cabeça trazia uma grinalda de rosas, mas os rouxinóis que voavam ao redor faziam cair as pétalas.
Ele mesmo estava rodeado de pássaros, oriolídeos, rouxinóis, calhandras e chapins-reais : parecia um anjo que acabara de cair do céu. Ao seu lado havia um jovenzinho que mantinha perto de si e que se chamava Doce Olhar.
Esse rapaz contemplava a dança guardando para o Deus do Amor dois arcos turcos : um era feito com a madeira de uma árvore cujos frutos são amargos e estava cheio de nós e protuberâncias por todas as partes; ainda, era mais negro que a amora. O outro era feito de uma madeira delicada e flexível; era largo e com uma bela forma; estava bem talhado e moldado, e tinha abundantes adornos: nele havia pinturas que representavam damas de todas as categorias e jovens alegres e elegantes.
Tais eram os arcos que carregava Doce Olhar. Além disso, ele não parecia um rapaz vulgar, já que guardava dez flechas de seu senhor e tinha cinco delas na mão direita. Essas estavam pintadas de cor ouro, tinham penas bem feitas e talhes perfeitos, pontas fortes, cortantes e agudas que podiam cravar-se sem dificuldade, mas não eram de ferro nem de aço, pois não havia nada nessas flechas que não fosse de ouro, com exceção das penas e da haste, que haviam sido colocadas em pontas cortantes com filetes.
Figura 10
Aqui estão representados todos os personagens que fazem parte da corte do Deus do Amor (isto é, Cupido). Eles são antônimos dos que se encontram no muro, no exterior do Jardim. Assim, o primeiro é o próprio Cupido, filho de Vênus e Marte. No entanto, ao invés de ser representado como uma criança (que era a maneira tradicional de representá-lo), Cupido surge alado, como um cavaleiro medieval, e com uma guirlanda de rosas na cabeça (as flores dedicadas a Vênus) – na iluminura ele está na parte superior da roda, à esquerda, segurando a mão esquerda de Ociosa. A seguir, as alegorias: Beleza, Riqueza, Generosidade, Franqueza, Lazer (o rei e dono do Jardim), Cortesia, Ociosa e Juventude, todas acompanhadas por jovens (essas virtudes também são citadas em Ovídio e em André Capelão). O servidor do Deus do Amor (Doce Olhar), isto é, essa alegoria, foi assim chamada porque tanto no mundo clássico quanto no medieval se pensava que o amor penetrava no coração através dos olhos. Doce Olhar está à esquerda, fora da roda, e porta os dois arcos turcos, de acordo com o texto (mas aqui representados com o talhe do arco inglês, o que nos sugere que o iluminista desconhecia o arco turco). As flechas de Doce Olhar são descritas no texto.
A melhor e mais rápida dessas flechas, a mais formosa, a que trazia a melhor pluma, chamava-se Beleza. Uma das que feria com maior facilidade recebera o nome de Simplicidade, segundo creio. Havia outra chamada Franqueza, que tinha uma pluma feita com valor e cortesia. A quarta flecha era muito pesada e não podia ir muito longe: chamava-se Companhia; se utilizada em distâncias curtas, poderia causar graves danos. A quinta se chamava Boa Face; era a mais ligeira e produzia grandes feridas; é digno de compaixão aquele que é alcançado por essa flecha, pois antes que se passe muito tempo verá sua saúde afetada com uma dor nada pequena.
Havia cinco flechas de outro tipo, que eram muito feias. As hastes e pontas eram mais negras que o diabo do Inferno. A primeira se chamava Orgulho; outra, que não era melhor, Vilania, que estava carregada com o veneno da traição; a terceira recebia o nome de Vergonha, e a quarta, de Desespero. A última sem dúvida se chamava Mudança no Pensamento. Essas cinco flechas eram todas iguais em suas formas e parecidas entre si. Caía-lhes muito bem um dos arcos, o que era feio, cheio de nós e de saliências: esse devia disparar tais flechas. Seguramente tinham propriedades contrárias às outras, mas não vou dizer agora suas qualidades, nem seus poderes: contar-vos-ei toda a verdade, não esquecendo o significado de cada uma delas – pois isso é importante – e revelar-vos-ei antes de finalizar meu relato. Agora, voltarei ao que estava dizendo.
Vou contar o aspecto, os modos e o comportamento das nobres gentes que estavam dançando. O Deus do Amor havia se aproximado muito de uma dama de elevada condição. Tinha escolhido bem sua companhia: essa dama se chamava Beleza, como uma das cinco flechas. Tinha todas as boas qualidades: não era de pele escura, nem demasiado morena, mas brilhava como a Lua, aquela frente a qual as estrelas parecem tímidas velas. Tinha a carne frágil como o orvalho, era cheia de pudor como uma recém casada e branca como o lírio; seu rosto era suave e liso, estava um pouco delgada, era ágil e não havia se maquiado nem se pintado, pois não tinha necessidade de se arrumar nem de se enfeitar.
Tinha os cabelos lourinhos e longos até os calcanhares, um nariz bem feito, como os olhos e a boca. Em meu coração entra uma grande doçura – que Deus me ajude! – quando me lembro do aspecto de cada um de seus membros, pois não houve ainda mulher mais formosa no mundo. Para ser breve, direi que ela era muito jovem e loura, agradável, afável, cortês e elegante, bem proporcionada e um pouco magra, gentil e alegre.
Ao lado da Beleza estava a Riqueza, dama de elevada posição, de grande valor e de reconhecido mérito. Aquele que se atrevesse a causar-lhe dano ou aos seus por meio de ações ou palavras, teria que ser muito valente e ousado, pois ela poderia prejudicá-lo ou beneficiá-lo muito: não é de hoje nem de ontem que os ricos têm um grande poder para ajudar ou para prejudicar.
Todos – grandes e pequenos – tributavam honras à Riqueza; todos se esforçavam em servi-la para merecer mais suas recompensas; cada um a chamava de “sua dama”, pois todos a temiam; o mundo inteiro estava sob seu domínio. Em sua corte há muitos aduladores, muitos traidores e muitos invejosos: são os que buscam o desprezo e a afronta para os amantes. Os aduladores elogiam as gentes quando estão em sua presença e subornam todo mundo com palavras, mas logo cravam pelas costas suas mentiras até o fim, até os ossos: esses aduladores têm obrigado muitos a fugir, fazendo com que se mantenham longe da corte muitos que deveriam ser conselheiros particulares. Que sobrevenham abundantes males a esses fofoqueiros cheios de inveja! Nenhum homem nobre ama sua vida.
Riqueza trazia um vestido de púrpura: não considereis exagero se vos digo e afirmo que jamais houve outro assim tão belo, rico e elegante em todo o mundo. Estava cheio de adornos de passamanaria e tinha desenhadas estórias de duques e reis com fios de ouro; trazia no colo uma fita de ouro e de esmaltes enriquecida com abundantes pedras preciosas que irradiavam uma grande claridade. Riqueza trazia um cinturão muito elegante: nenhuma dama alguma havia colocado um tão rico. Seu broche era feito de uma pedra que tinha propriedades e virtudes extraordinárias, pois quem a levasse consigo não precisava temer nenhum veneno, nem ser envenenado com nada.
Ela fazia bem estimar tal pedra, que valia para qualquer rico mais que todo o ouro de Roma. A fivela era de outro tipo de pedra, que curava a dor de dentes com a virtude de que quem a contemplasse, por mais jovem que fosse, ficaria salvo o resto da vida. Os detalhes no tecido dourado eram de ouro puro: grossos e pesados, o valor de cada um deles era, no mínimo, de um besante.
Sobre as tranças louras ela trazia um diadema de ouro: até então nunca vira um tão formoso, em minha opinião. Era de ouro retorcido. Seria muito hábil na descrição aquele que fosse capaz de vos contar ou descrever as gemas que havia nele: seria impossível calcular o valor das pedras que estavam engastadas no ouro. Ali havia rubis, safiras, jacintos e mais de duas onças de esmeraldas; o diadema tinha por toda a parte da frente um rubi engastado com grande habilidade: esse emitia tanta luz que quando anoitecia podia ser visto a uma légua de distância, e saía tal claridade da pedra que Riqueza tinha seu rosto e sua face resplandecida, e ao seu redor tudo ficava iluminado.
Ela estava de mãos dadas com um rapaz extraordinariamente belo, que era seu verdadeiro amigo. Era um homem que prazerosamente se entretinha em cuidar bem de seus pertences: calçava-se e se vestia com esmero, tinha valiosos cavalos, pois preferia ser acusado de assassinato ou latrocínio que ter rocinantes ruins em seu estábulo. Por isso, estimava muito a elegância e a benevolência de Riqueza, pois estava sempre pensando em ter grandes gastos: ela os mantinha e o sustentava, dando-lhe tantos bens como se os tirasse de um celeiro.
A seguir vinha a Generosidade, que era bem educada, sabia agradar as gentes e gastar muito. Era da linhagem de Alexandre, e nada lhe causava maior prazer que dizer “toma”. Avareza, a pobre, não estava tão disposta a receber como Generosidade a dar. Deus fazia crescer suas riquezas, de modo que quanto mais dava, mais tinha. Grandes eram os méritos e a fama de Generosidade: ela tinha à sua disposição tanto sábios quanto loucos, pois a todos havia conquistado com seus dons. E se houvesse alguém que a odiasse, com seus muitos favores ela conseguiria ganhá-lo como amigo. Por isso, os ricos e os pobres a amavam.
Muito louco está o homem de elevada condição que é tacanho, já que esse é o pior vício que se pode ter: o avaro não conquistará nunca nem senhorios, nem grandes terras, porque não tem amigos o suficiente para cumprir seus desejos. Aquele que quiser ter amigos, não deve apreciar muito seus bens, já que ganhará amigos com bons presentes, pois do mesmo modo que o ímã atrai o ferro com facilidade, o ouro e a prata atraem o coração das gentes que se presenteia.
Generosidade trazia um vestido novo, de púrpura sarracena. Seu rosto era formoso e bem feito; trazia o colo à mostra, pois acabara de presentear seu broche ali mesmo a uma dama. Mas não lhe ficava mal ter seu colo descoberto, pois deixando a garganta à vista, por debaixo da camisa sua pele suave ficava às claras. Generosidade, a apreciada, a prudente, estava acompanhada por um cavaleiro da linhagem do bom rei Artur da Bretanha. Esse cavaleiro sustentava um estandarte de valor e uma bandeira; e tinha tal fama que suas histórias eram e continuam sendo cantadas diante de reis e de condes. O cavaleiro acabava de regressar de um torneio em que havia realizado grandes proezas e numerosos combates por sua amiga; destruíra muitos elmos verdes, tinha atravessado inumeráveis escudos com seu brocal e derrubado muitos cavaleiros, vencendo-os graças à sua força e ao seu valor.
A seguir estava a Franqueza, que não era nem morena, nem de cor amarelada, era mais branca que a neve. Não tinha o nariz chato como os de Orléans, pelo contrário, possuía um nariz longo e reto; seus olhos eram verde-claros, alegres, com sobrancelhas arqueadas, cabelos louros e longos; era mais singela do que uma pomba. Tinha um coração doce e cheio de amabilidade: não se atrevia a dizer ou fazer nada indevido contra ninguém. Se conhecesse um homem que se sentisse atormentado e desejoso de tê-la como amiga, penso que não tardaria em se compadecer dele, pois seu coração era tão misericordioso, tão doce e tão amável, que se alguém sofresse por ela sem que ela lhe prestasse ajuda, pensaria estar cometendo uma grande vilania.
Trazia um vestido que não era nada rústico: não havia outro tão rico até Arras; estava tão bem cortado e costurado que não havia uma só ponta que não estivesse em seu lugar certo. Muito bem vestida estava Franqueza, pois não havia vestido melhor para as donzelas do que o que ela usava: a mulher fica mais elegante e atraente com um vestido com cota como aquele. O vestido, que era branco, indicava que a pessoa que o vestia era doce e sincera.
Atrás dele estava Cortesia, que era muito estimada por todos, pois não era nem orgulhosa nem louca. Foi ela quem me chamou para dançar quando chegara ali, e eu a agradeço por isso. Ela não era ingênua nem sombria, era prudente e discreta, sem insolência, de boas respostas e palavras agradáveis; ninguém a contrariava e com ninguém se zangava. Tinha cabelos castanhos. Era gentil, formosa e elegante – não conheço outra de aspecto mais agradável; por sua beleza era digna de ser imperatriz ou rainha. Estava acompanhada por um cavalheiro de maneira afetuosa, palavras amenas e que honrava as pessoas como devia. Eram um cavalheiro belo e de nobre presença, hábil com as armas e amado por sua dama.
Depois vinha a bela Ociosa, que se mantinha ao meu lado. Já lhes disse, sem ocultar nada, qual era seu aspecto e sua imagem: não vos contarei nada mais. Ela foi a primeira a me tratar com bondade, ao abrir a porta do jardim, e lhe sou grato.
Ao seu lado estava, se não me equivoco, Juventude, de rosto claro e alegre e que me parecia ter pouco mais de doze anos. Era um pouco simples, não pensava em nenhum mal, nem em perfídia alguma, pelo contrário, estava alegre e contente, pois a jovem não se preocupava em nada mais do que brincar, como bem sabeis. Seu amigo era tão íntimo que a beijava sempre que quisesse na frente de todos que estavam dançando. Ainda que alguém lhes houvesse dito duas palavras, não teriam se envergonhado, pois estavam se beijando como dois pombos. O rapaz era jovem e belo, devia ter a mesma idade que sua amiga e sentia a mesma coisa que ela.
Assim bailavam aquelas pessoas, acompanhadas por outras de sua corte. Todas eram nobres, educadas e de bom comportamento. Depois de ver a aparência dos que dirigiam as danças, eu comecei a sentir um desejo de contemplar e percorrer o jardim e detive meu olhar nos formosos loureiros, pinheiros, aveleiras e nogueiras.
O baile estava acabando, pois a maioria se retirava com suas amigas para a sombra das árvores a fim de cortejá-las. Deus, que boa vida levam! Louco é quem não sente inveja! Aquele que pudesse se permitir uma vida semelhante suportaria com gosto a falta de outros bens menores, pois não há paraíso maior que estar à vontade com sua amiga.

Comecei a andar, entretendo-me sozinho pelo jardim, indo de um lado para o outro. Então o Deus do Amor chamou Doce Olhar, pois não queria continuar guardando por mais tempo o arco de ouro. Sem demora, ordenou-lhe que o esticasse, e este o fez imediatamente. Deu-lhe o arco já esticado e cinco flechas fortes e brilhantes, já preparadas para serem lançadas. O Deus do Amor começou a seguir-me à distância, com o arco na mão. Que Deus me proteja da ferida mortal se ele dispara contra mim!
Eu, que até então não dera nenhuma importância àquilo, estava alegre, divertindo-me livremente pelo jardim, enquanto o outro me seguia. Não me detive em lugar algum até que não houvesse percorrido tudo. Era um jardim perfeitamente quadrado, igual na largura e na altura.
Não havia árvore carregada de frutos – a não ser que fosse uma árvore desprezível – que não houvesse dois ou três exemplares. Havia macieiras, bem relembro, com abundantes maçãs vermelhas, que são uma boa fruta para os doentes; havia inúmeras nogueiras, que quando chegava a época se enchiam de nozes moscadas, que não são nem amargas nem insípidas; abundavam as amêndoas plantadas no jardim; quem necessitasse, encontraria ali muitas figueiras e numerosas palmeiras de tâmaras. Havia no jardim diferentes especiarias: cravos, alcaçuz, cardamomos frescos, erva-luiza, anis, canela e muitas outras especiarias agradáveis que fazem com que a comida seja boa na mesa.
No jardim havia árvores frutíferas carregadas de marmelos e de pêssegos, castanhas, nozes, maçãs, pêras, nêsperas, ameixas cláudias e pretas, cerejas vermelhas frescas, serbas, amieiros e avelãs. O jardim estava povoado de grandes loureiros e de altos pinheiros; também eram abundantes no jardim as oliveiras e os ciprestes; havia frondosos e robustos ulmos, loendros, faias, aveleiras compridas, álamos, freixos, áceres, altos abetos e carvalhos. Que mais posso dizer? Havia tal variedade de árvores que encontraria muita dificuldade para enumerá-las por completo. Saiba que as árvores estavam tão separadas uma das outras, como deveria ser, que distavam mais de cinco ou seis toesas. Os galhos eram largos, altos e tão frondosos por cima, que impediam que o calor e o sol chegassem a bater no chão e danificar a tenra erva.
No pomar havia gamos, corços e muitos esquilos que subiam nas árvores; havia coelhos que entravam e saíam de suas tocas sem cessar; uns corriam atrás dos outros de infinitas formas pela fresca grama verde.
Havia ali não sei quantas fontes claras à sombra das árvores, sem insetos ou rãs. A água corria com um murmúrio doce e agradável por pequenos regatos que Lazer havia mandado fazer. Ao redor dos riachos e à margem das fontes claras e vivas, brotava com força a erva fresquinha. Ali se podia recostar na sua amiga como em um leito, pois a terra era branda e suave. Graças aos mananciais, crescera erva suficiente. Entretanto, o lugar também estava embelezado pela abundância de flores que sempre havia ali, tanto no inverno quanto no verão: lindas violetas recém abertas, frescas e macias; flores brancas, vermelhas e muitas variedades de flores amarelas. Aquela terra era belíssima, adornada e salpicada de flores de distintas cores e de extraordinário perfume.
Não falarei por mais tempo daquele agradável e aprazível lugar. Vou me calar, pois seria impossível contar toda a beleza e a formosura do pomar.
Fui de um lado a outro até que percorri e contemplei o jardim em sua totalidade. Enquanto isso, o Deus do Amor me seguia atento, como um caçador que espera o animal entrar no lugar adequado para, então, lançar a flecha. Cheguei a um lugar belíssimo, um pouco distante, no qual encontrei uma fonte debaixo de um pinheiro. Desde os tempos de Carlos Magno e de Pepino não se vira uma árvore tão formosa: crescera tanto que em todo o jardim não havia árvore mais alta.
Com grande habilidade, a natureza havia situado a fonte em uma pedra de mármore que tinha pequenas letras escritas na parte superior e que diziam: “Aqui morreu o belo Narciso”.
Figura 12
Em uma atitude de grande estupefação (ressaltada pelos braços erguidos e as mãos abertas) o poeta encontra a Fonte de Narciso, uma maravilhosa fonte de mármore que simboliza o centro do Paraíso Terrenal, centro do Jardim do Amor, centro do mundo, pois dela saem os quatro rios que marcam os pontos cardeais. Nas bordas da fonte as letras indicam: "Aqui morreu o belo Narciso", e então o poeta relembra a triste estória de Narciso. Reparem que ao lado da fonte se encontra um frondoso pinheiro, árvore que não florece e, por isso, é o símbolo da esterilidade, mas também símbolo da imortalidade, pois suas folhas persistem e sua resina é incorruptível.
Narciso foi um rapaz que o amor capturou em suas redes. O amor o atormentou tanto, e tanto fez, que ele chorava e se lamentava; ao final entregou sua alma, pois Eco, dama de elevada posição, o amava mais que qualquer ser vivo, mas foi tão maltratada por ele, que acabou dizendo que obteria seu amor ou morreria. Porém, Narciso era tão belo, que por sua grande formosura estava cheio de desdém e de orgulho; e não a quis aceitar por mais que ela lhe pedisse e suplicasse. Ao se ver rejeitada, Eco sentiu tamanha dor e tristeza e considerou seu desprezo tão grande que caiu morta instantaneamente. Mas antes de morrer suplicou e rogou a Deus que Narciso, por seu coração fugidio e sua indecisão para amar, fosse um dia atormentado e destruído por um amor pelo qual ele não pudesse encontrar médico que o curasse: assim ele saberia e conheceria o sofrimento que os fiéis amantes sentem quando rejeitados de forma tão vil.
Esta súplica era razoável e, por isso, Deus a aceitou. Assim, um dia, casualmente, Narciso chegou àquela fonte de águas puras e cristalinas, pôs-se à sombra do pinheiro no dia que regressava da caça e que havia se esforçado correndo para cima e para baixo, até que se sentiu sedento pela dureza do calor e pelo cansaço que lhe privara de alento.
Quando chegou à fonte que o pinheiro cobria com seus galhos, pensou beber dela: abaixou-se disposto a saciar a sede e então viu na água limpa e clara seu próprio rosto, seu nariz e sua doce boquinha. Ficou surpreso, atraído por seu reflexo, pois pensava estar vendo o rosto de um jovem extraordinariamente formoso. Bem se vingou o Amor do grande orgulho e da altivez que Narciso tinha. Foi então que recebeu a recompensa que merecia: passou tanto tempo na fonte que se enamorou por seu próprio reflexo e ao fim morreu – assim terminou a estória. Com efeito, quando se deu conta de que não podia levar adiante seus desejos e que estava tão bem apanhado que não poderia voltar a estar satisfeito em nenhum lugar e em nenhuma circunstância, perdeu a cabeça pela grande dor e morreu em pouco tempo. Desse modo, ele recebeu a recompensa e o merecido pela pobre que havia desprezado.
Damas, aprendam com esse exemplo, vós que tratais mal a vossos amigos: se os deixais morrer, Deus vos fará pagar caro.
Quando graças àquele título eu soube que aquela era certamente a fonte do belo Narciso, retrocedi sem me atrever a olhar para dentro e me acovardei, por lembrar de Narciso e de sua desgraça. Porém, considerei que me assustava sem motivo, e que podia me aproximar da fonte sem temor, já que distanciara sem razão.
Então me aproximei, inclinei-me para contemplar a água que brotava e o cascalho que reluzia ao fundo mais branco que a prata pura. Tal era essa fonte, e não há outra igual em todo o mundo: sua água era sempre fresca e nova, pois dia e noite jorrava com grandes borbulhas de dois mananciais cristalinos e profundos.
Ao redor a erva crescia espessa, graças àquela abundante e generosa água, que sequer morre no inverno, e à fonte que nunca seca, nem escasseia.
No fundo da fonte havia duas pedras de cristal que contemplei com atenção. Vou lhes dizer uma coisa que, acredito, irá surpreendê-los quando ouvirem. Quando o Sol, que tudo vê, lança seus raios na fonte e a claridade chega ao fundo, aparecem mais de cem cores no cristal que, graças ao Sol, torna-se violeta, amarelo e vermelho. É um cristal de propriedades maravilhosas: nele se refletem as árvores, as flores ao redor e tudo que enfeita o jardim.
Para que entendais melhor, vou lhes explicar isso por meio de um exemplo: do mesmo modo que o espelho mostra tudo o que tem na sua frente, que se vê sem dificuldade inclusive com sua cor e forma, o mesmo ocorre com o cristal do qual vos falo, que mostra a quem olha na água tudo o que há no jardim. Esteja onde estiver, sempre se verá a metade do jardim e, se der a volta, poderá contemplar o resto. Não há nada, por menor que seja ou por mais distante e escondido que esteja, que não apareça como se estivesse pintado no cristal.
Este é o espelho perigoso no qual Narciso, cheio de orgulho, contemplou seu próprio rosto e seus olhos verdes claros, caindo morto imediatamente. Quem se olhar nesse espelho não encontrará salvador nem médico que possa impedir que veja em seus olhos algo que o impulsione imediatamente a amar. Muitos homens valorosos têm sido vencidos pelo espelho, pois mesmo os mais sábios, os mais nobres e os mais bem dispostos não tardam a serem agarrados e aprisionados. Aqui, um novo tipo de raiva surpreende as gentes; aqui mudam os sentimentos; aqui não é necessário o bom sentido nem a discrição; aqui só há vontade pura de amar; aqui não há ninguém que possa ser aconselhado, pois Cupido, filho de Vênus, espalhou a semente do Amor que guarda a fonte, e fez com que fossem colocadas armadilhas e alçapões ao redor das donzelas e dos rapazes para prendê-los, pois o Amor não quer outras aves.
Por causa da semente nela semeada, essa fonte recebeu o justo nome de Fonte do Amor; e muitos têm falado dela em numerosos lugares, em novelas e em estórias. Porém, não ouvireis melhor descrição do assunto que a que eu vos fareis, descobrindo para vocês todos os seus mistérios.
Contemplei cuidadosamente a fonte e os cristais do fundo, que me revelavam mil coisas que existiam ao redor. Porém, infeliz de mim, o fiz em má hora e tanto suspirei depois! O espelho me enganou: se tivesse antes conhecido seu poder e suas virtudes, não haveria olhado para ele, pois naquele momento caí na armadilha que tem aprisionado e traído a tantos homens.
Figura 13
Na Fonte de Narciso, o poeta vê dentro dela dois cristais que refletem todo o Jardim. Na realidade, os cristais são os olhos da dama, que refletem o Jardim e assim representam o deleite no qual o poeta viveu seus últimos momentos. Esses olhos são uma alegoria do espelho, símbolo de Vênus. Nesse momento, o poeta já está preparado para se apaixonar.
No espelho, entre outras mil coisas, vi roseiras carregadas de flores que estavam em um lugar afastado e rodeado por uma cerca. Então senti um grande desejo de ir contemplar o grupo maior, e não deixaria de fazê-lo em troca de toda riqueza de Pavia e de Paris. Tomado por tal fúria que já surpreendeu a muitos outros, dirigi-me de imediato até os roseirais. Ao me aproximar, a fragrância das rosas me atravessou até as entranhas, como se eu tivesse acabado de ter sido embalsamado.
Temendo que me censurassem ou me chamassem a atenção, não me atrevi a colher nenhuma rosa, mesmo que fosse só uma para ter na mão e sentir seu perfume. Temia me arrepender, pois podia molestar o senhor do jardim.
As rosas abundavam em grandes grupos de tal forma que não se encontrariam mais belas sob o céu. Havia botões pequenos e fechados, outros um pouco maiores e outros, já quase no ponto ideal de desabrocharem. Esses não eram nada desprezíveis, pois as rosas abertas e alegres murcham em um dia, enquanto os botões se mantêm frescos por, pelo menos, dois ou três dias. Senti-me encantado, pois em nenhum lugar eles crescem tão formosos: quem pudesse arrancar um deveria estimá-lo muito. De minha parte, nada me satisfaria mais que fazer uma grinalda com eles.
Dentre todos, escolhi um botão belíssimo; ao seu lado me pareceram inferiores os demais que vi. Tinha a cor vermelha mais perfeita que a Natureza pôde criar e estava rodeado por quatro pares de pétalas, colocadas com habilidade pela Natureza, umas nas outras. O talo era reto como um junco e sobre ele a flor se assentava sem pender nem se inclinar. Seu aroma se espalhava ao redor e o perfume que produzia enchia todo lugar. Ao cheirá-lo, perdi a vontade de abandonar aquele lugar e me aproximei para colhê-lo, mas não me atrevi a estender as mãos: os cardos afiados e os pontudos espinhos me impediram e assim não me deixei avançar, por medo de me causar dano – afinal, eram espinhos cortantes e sutis, além de urtigas e sarças de pontas finas como chifres.
O Deus do Amor que, com o arco retesado havia decidido me seguir e me espiar, se deteve debaixo de uma figueira. Ao ver que eu havia escolhido aquele botão, que me agradava mais que qualquer outro, pegou uma flecha, a empunhou na corda e esticou o arco, que era muito resistente, até a altura da orelha e, apontando-a, fez com que a flecha entrasse em um olho e chegasse com violência até meu coração. Senti tamanho frio que muitas vezes depois ainda tremo só de lembrar, mesmo envolto em um manto quente.
Atingido dessa maneira, caí de costas, o coração falhou, mentiu para mim e então eu permaneci desfalecido durante muito tempo. Ao recobrar os sentidos e a razão, encontrei-me debilitado e pensei ter perdido grande quantidade de sangue. Contudo, a flecha cravada não me fez derramar uma só gota e a ferida estava completamente seca. Peguei a flecha com as mãos e comecei a tirá-la com força e suspirar de dor. Esforcei-me tanto que consegui arrancar a haste com o penacho, mas a ponta peluda, que se chamava Beleza, estava tão profundamente cravada em meu coração, que eu não pude arrancá-la. Assim, ela ficou ali, sem que brotasse nem uma gota de sangue.
Senti-me angustiado e cheio de preocupação, pois o perigo havia se duplicado e eu não sabia o que fazer, nem o que decidir. Ignorava se encontraria algum médico para a minha ferida, pois não esperava que nenhuma daquelas ervas ou raízes me curasse. Enquanto isso, meu coração não se ocupava com outra coisa que não fosse me levar até a rosa: se a tivesse em meu poder, sem dúvida, me devolveria a vida, porque a mim bastava vê-la e sentir seu perfume para que a dor se aliviasse de forma considerável.
Comecei a me aproximar da flor de suave aroma, enquanto o Amor pegava outra flecha de ouro. Era a segunda, e se chamava Simplicidade, que faz com que muitos homens e muitas damas no mundo se enamorem. Quando o Amor viu que me aproximava, sem fazer ameaças disparou em minha direção a flecha, que não tinha aço; e a ferina flecha chegou ao meu coração através dos olhos. Não consegui sarar com nada, pois ao tentar arrancá-la, sem grande esforço retirei a haste, mas a ponta não saiu. Estou seguro de que se antes desejava alcançar a rosa, agora minha vontade de obtê-la era muito maior. Ao aumentar meu sofrimento, crescia em mim o desejo de ir em busca da flor que cheirava mais que uma violeta. Melhor teria sido retirar-me, mas não podia recusar as ordens de meu coração: à força tinha que ir até onde ele se dirigia.
O arqueiro, que se esforçava e tentava me causar dano, não me deixava ir sem motivo; e, para me enlouquecer, fez com que a terceira flecha voasse contra meu corpo. Essa flecha era a que se chamava Cortesia. A ferida foi profunda e larga, e me fez cair desmaiado sob uma frondosa oliveira. Durante muito tempo estive ali sem me mover. Quando voltei a ter forças, peguei a flecha e imediatamente arranquei-a de meu flanco, mas não pude retirar a ponta, por mais que tivesse tentado.
Senti-me angustiado e pensativo. Essa ferida me atormentava, obrigando-me a ir até a flor que tanto me agradava. Porém, o arqueiro me infundia medo – e com razão – pois aquele que se escaldou deve fugir da água.
Grande coisa é a necessidade: ainda que eu tivesse visto caírem flechas e pedras mescladas tão abundantemente como se fossem granizo, eu não teria deixado de me dirigir até ali, pois o Amor – que tudo supera – dava-me valor e ousadia para cumprir suas ordens.
Pus-me de pé, mesmo débil e desfalecido como se estivesse ferido. Sem me preocupar com o arqueiro, procurei caminhar até a rosa que tinha meu coração, mas havia tantos espinhos, cardos e sarças que não consegui avançar o suficiente para chegar até a flor.
Tive que ficar junto à cerca que rodeava as rosas e que tinha espinhos pontiagudos. Contudo, era muito agradável estar tão próximo e notar o doce aroma que saía da flor; agradava-me tudo o que via, ; a recompensa era grande e me provocava gozo e alegria suficientes para esquecer os sofrimentos. Eu estava contente e gozoso, pois não havia nada que eu desejasse tanto quanto ficar ali, de forma que nunca me afastaria.
Após um breve momento, o Deus do Amor – que estava destruindo meu coração, pois o tinha feito de alvo – voltou a me atacar e, para minha desgraça, disparou outra flecha que me fez uma nova ferida debaixo do peito. A seta se chamava Companhia: nenhuma outra vence mais rápido as damas e as donzelas. Ela imediatamente renovou a dor das feridas e eu desmaiei três vezes em um instante.
Ao voltar a mim, chorei e suspirei, pois meu sofrimento aumentava e piorava, de forma que eu perdia toda a esperança de cura e alívio. Preferia estar morto ao invés de continuar vivo, pois definitivamente – segundo me parece – o Amor faria de mim um mártir e eu não poderia escapar.
Entretanto, pegou outra flecha que apreciava muito, mas que eu considero muito pesada: a Boa Cara, que não consente que nenhum enamorado se arrependa de servir ao Amor, à margem de seus próprios sentimentos. É uma flecha pontuda, que atravessa com facilidade qualquer coisa, e cortante, como a lâmina de cortar da espada. Amor havia untado muito bem aquela ponta com um bálsamo precioso para que não causasse grande dano, pois não desejava que eu morresse, somente que recebesse algum alívio com o ungüento que estava cheio de consolo. Amor a havia preparado com suas mãos para reconfortar os leais amantes. Para aliviar meus males disparou em minha direção essa flecha, produzindo uma grande ferida.
O ungüento correu por minhas feridas e me devolveu a força do coração que eu havia perdido: eu estaria mal e teria morrido se não fosse pelo bálsamo. Arranquei a haste, mas a ponta da nova flecha também ficou dentro de mim.
Se em mim haviam ficado cravadas as cinco, dificilmente poderiam ser arrancadas. O ungüento aliviou a dor daquelas feridas que me faziam empalidecer.
Esta última flecha tinha uma curiosa virtude: produzia doçura e amargura. Tenho sentido e notado o auxílio que me prestou, mas também seu prejuízo: ao se cravar produziu angústia, depois seu bálsamo me aliviou. Por um lado me untava, por outro me feria: assim me ajudava, assim me causava mal.
Figura 14
O Deus do Amor lança a última flecha, Boa Cara, que penetra no olho direito do poeta. Como diz o poema, a flecha estava untada com um ungüento (um bálsamo precioso, nas palavras do texto) para aliviar as feridas do amor causadas pelas outras quatro flechas. As duas idéias – morrer de amor e a Medicina como arte da cura – foram expressas por Ovídio e por André Capelão, pois o amor era considerado um mal que deveria ser curado. Na Idade Média, o amor era entendido como um fogo que queimava o amante (idéia também expressa em Ovídio). No texto, a sensação do poeta é de doçura e amargura – sentimentos contraditórios que o amor causava e que eram responsáveis pelo desconforto da alma (daí a idéia do amor como um mal). Por fim, reparem que as vestes do Deus do Amor agora são brancas (até então ele estava sendo representado com vestes azuis - imagens 9, 10 e 11) e ele porta uma coroa dourada, certamente um símbolo para representar o derradeiro momento de sua vitória, quando subjuga e torna o poeta seu vassalo.
Não demorou para que o Amor se aproximasse de mim, saltando com toda a rapidez. Ao chegar ao meu lado, disse-me em voz alta:
– Vassalo, considera-te preso, pois não podes fugir nem te defender; não ofereças resistência, entrega-te a mim. Quanto mais de bom grado o fizeres, logo encontrarás piedade. Está louco quem pretende resistir ao que deve louvar e ao que tem que suplicar clemência. Não podes te esforçar contra mim. Quero te mostrar como não ganharás nada com o orgulho e a soberba. Renda-te sem lutar e de bom grado, pois assim o desejo.
Eu lhe respondi:
– Por Deus, com gosto o farei, não vou me defender. Não me permita Deus pensar que posso resistir frente a vós, pois não seria justo nem razoável. Podeis fazer comigo o que quiserdes, enforcai-me ou dai-me a morte: sei eu que não posso impedir-vos, pois minha vida está em vossas mãos. Não viverei até amanhã se não for essa a vossa vontade. De vós espero alegria e saúde, pois ninguém as dará sem que vossa mão, que me feriu, me cure. Se vós quiserdes fazer de mim vosso prisioneiro, não me causareis nenhum dano e eu não ficarei decepcionado. E sabeis que não sinto nenhuma aflição, pois tenho ouvido falar tantas coisas boas de vós, que desejo colocar todo o meu corpo e todo o meu coração à vossa disposição; já que se cumpro vossa vontade, não poderei me queixar de nada. E mais: penso que, em algum momento, chegarei a merecer o que espero e, com essa condição, rendo-me.
Após falar assim, quis beijar-lhe os pés. Porém, pegou minhas mãos, dizendo-me:
– Estimo-te muito e te aprecio por ter respondido assim. Nunca, certamente, tal resposta saiu da boca de vilão mal-educado; ganhastes tanto em minha consideração que quero que agora mesmo me jures fidelidade em teu beneficio. Beijar-me-ás na boca, a qual nenhum vilão é permitido tocar; não deixo que o façam nem as pessoas rudes, nem os porqueiros. Há de ser cortês e livre para entrar em meu serviço. Sem dúvida é duro e pesado servir-me, porém te faço uma honra muito grande ao te aceitar, e deves sentir-te muito contente por ter um senhor tão bom e tão formoso, pois o Amor é o porta-estandarte da Cortesia e carrega sua bandeira, ao passo que possui tão bons modos, é tão doce, tão franco e tão gentil, que quem entra a seu serviço disposto a honrá-lo perde toda a vilania, toda a maldade e qualquer má educação.
Então, me fez seu vassalo juntando as mãos; e me alegrei muito quando sua boca beijou a minha, esse foi o momento em que tive maior alegria. A seguir, me pediu provas de minha fidelidade.
– Amigo, tenho recebido a vassalagem de muitos, e a maioria tem mentido. Os que cometem felonia, cheios de falsidade, muitas vezes têm me traído e, por sua culpa, tenho ouvido numerosas queixas. Porém, já saberão como o sinto: se posso aprisioná-los de forma justa, vender-lhes-ei caro sua traição. Agora, desejo, pelo amor que te tenho, estar seguro de ti, e quero que estejas tão unido a mim que não possas me negar nenhuma promessa, nenhuma condição, nem te opor a nada que eu te peça de agora em diante. Se fizeres trapaça, será uma grande desgraça, pois me pareces leal.
– Senhor – respondi – escuta-me. Não sei por que me pedis garantia e fianças. Já sabeis que realmente me haveis privado de meu coração de tal modo que, mesmo que desejasse, não poderia cumprir minha vontade a não ser com vossa intercessão. Meu coração é vosso, não meu, e, para o bem ou para o mal, tenho que fazer vossos desejos, pois ninguém pode escapar de vós. Pusestes tal vigilância, que ele é custodiado pela consciência. Mas se apesar de tudo temeis algo, trancai-o com uma chave, e levai-a como fiança.
– Por minha cabeça, isso não é uma brincadeira – responde o Amor – por isso, aceito. É senhor do corpo quem tem o coração sob o seu domínio: ultrajante seria pedir mais.
Ele então tirou de sua bolsa uma pequena chave, muito bem feita, trabalhada com ouro puro:
– Com esta chave trancarei seu coração e não quero outra garantia. Embaixo desta chave tenho guardadas minhas jóias. Por minha alma te digo que ela é realmente a senhora do meu cofre e que tem um grande poder.
Assim, ele cumpriu seu desejo. Depois de tranqüilizá-lo, lhe disse:
– Senhor, eu estou disposto a levar adiante vossa vontade e aceito com gosto meu serviço, pela fé que me deveis. Não o digo por covardia ante minhas tarefas, pois um servidor se esforça em vão para realizar obras dignas de encômio, se tais obras não agradam ao senhor ao qual as apresenta.
O Amor respondeu:
– Não te preocupes. Já que entrastes em minha mesnada, recebo teu serviço com gosto. Colocar-te-ei em um lugar alto, se te privares da maldade. Porém, creio que não será logo, pois os grandes bens não chegam de forma repentina: é necessário esforçar-te e esperar. Sofre e suporta a angústia que agora te prejudica e te fere, pois conheço o medicamento que te curará. Se te manténs leal, dar-te-ei um bálsamo que curará tua ferida. Contudo, por minha cabeça, já veremos se servirás de bom grado e como cumprirás dia e noite os mandamentos que dou aos leais amantes.
– Senhor, por Deus, antes que vás, diga-me quais são. Estou disposto a cumpri-los, mas antes devo conhecê-los, caso contrário, poderia errar o caminho facilmente. Por isso quero conhecê-los para não infringi-los de nenhuma maneira.
– Falastes bem. Escuta e relembra, pois o mestre desperdiça todo o seu esforço quando o discípulo que o está escutando não se preocupa em reter para depois recordar.
Então, o Deus do Amor explicou seus mandamentos tal como vais ouvir, palavra por palavra: este Livro os enumera sem erros. Quem deseja amar, que preste atenção, pois o Livro se ocupa deles a partir de agora.
Começam agora boas razões para escutar, se aquele que as conta o sabe fazer de forma adequada, pois o final do sonho é extraordinário e seu conteúdo é totalmente novo. Aquele que ouvir até o fim aprenderá bastante sobre os jogos do Amor; assim espere até que eu comece a explicar-lhe o significado do sonho. A verdade, que está encoberta, mostrar-se-á de forma evidente quando me ouvir interpretar o sonho, pois nele não há uma só palavra que seja mentira.
– Primeiro – diz o Amor – quero e ordeno que abandones imediatamente a Vilania, e que não voltes a ela, se não queres inimizade comigo, pois maldigo e excomungo a todos que a amam. A Vilania pertence aos vilões, por isso não a quero: o vil é traidor, sem piedade, infiel e inimigo. Guarda-te de contar às gentes coisas que se devem manter em silêncio. Não é nenhuma proeza falar mal; espelha-te em Kay, o senescal, que por suas zombarias teve má fama e foi odiado no passado. Enquanto Gawain, o discreto, era estimado por sua cortesia, Kay era desprezado por ser mais vaidoso, cruel, insolente e de má língua que os demais cavalheiros.
– Sê cortês e afável, de doces e sensatas palavras tanto com os grandes quanto com os pequenos. Pela rua, acostuma-te a ser o primeiro a saudar as gentes. Se alguém te saúda primeiro, não mantenhas tua boca muda, procura devolver a saudação sem tardar nem demorar.
– Depois, procura não dizer palavras sujas e grosseiras: tua boca não deve se abrir para nomear coisas vis. Não considero cortês quem alude a vulgaridades e a coisas feias.
– Serve e honra a todas as mulheres, esforça-te em fazê-lo; se ouvires algum desbocado se meter com elas, repreende-o e diz-lhe que se cale. Se puderes, faça algo que agrade às damas e às donzelas, de forma que ouçam falar bem de ti: deste modo ganharás prestígio.
– A seguir, evita o Orgulho, pois para qualquer um que esteja em seu juízo, o Orgulho é uma loucura e um pecado, e quem cai nele, é incapaz de dominar seu próprio coração para que sirva e suplique. O orgulhoso faz o contrário do que deve fazer o leal enamorado.
– Aquele que quer se dedicar ao amor deve se comportar com elegância, caso contrário, valerá pouco. A Elegância não é igual ao Orgulho: o que é elegante sem orgulho vale mais se não for um louco presunçoso. Veste-te e calça-te bem, de acordo com tuas rendas: um vestido formoso e belos adornos são grandes vantagens. Confia teu vestido a um bom costureiro, que faça com que as pontas lhe caiam bem e que as mangas sejam elegantes e bem ajustadas. Tem sapatos com laços e botinas, sempre novos e recentes, e procura que se te ajustem tão bem que as vilãs discutam de que modo os pusestes e como. Enfeita-te com luvas, bolsa de seda e cinturão; e se não fores suficientemente rico para fazê-lo, arranja-as como puderes, mas procura sempre sair o melhor vestido possível, sem que isso te cause a ruína.
– Utiliza grinaldas de flores, que custam pouco, ou de rosas em Pentecostes: isso está ao alcance de qualquer um, não é necessário ser muito rico.
– Não toleres nenhuma mancha em teu traje; lava as mãos, limpa os dentes. Se nas unhas aparece uma mancha de sujeira, não permitas sua presença. Costura as mangas, penteia os cabelos, mas não te maquies nem te pintes, pois isso é próprio das damas e de homens de má fama, que se ocupam de amores tortos.
– A seguir, lembra que deves estar sempre contente: procura ser alegre e vivaz, pois o Amor não se ocupa das pessoas sombrias. É uma enfermidade muito própria da cortesia rir e alegra-se continuamente. Mas às vezes resulta que os enamorados alternem o gozo e o sofrimento, pois sentem que os males do amor são ora doces, ora amargos. O mal de amor é caprichoso: o enamorado ora está alegre, ora abatido, ou se lamenta; em um momento chora, pouco depois canta.
– Se sabes fazer algo que agrade às gentes, ordeno-te que o faças. Cada qual deve fazer em todos os lugares o que considera que faz melhor, pois a partir disso receberás fama, mérito e vantagens. Se crês que és ágil e ligeiro, não resistas em saltar; se montas bem, não pares de cavalgar para cima e para baixo; se és hábil quebrando lanças, podes conseguir que te apreciem muito; se és hábil com as armas, serás dez vezes mais amado. Se tens voz clara e afinada, se te pedem, não deves eximir-te na hora de cantar, pois o bom canto é muito apreciado. O mesmo ocorre com o rapaz que sabe dançar e tocar a viola ou a cítara: assim se pode obter grandes progressos.
– Evita que te considerem avaro, pois isso te seria prejudicial: é normal que os enamorados dêem o que é seu com mais generosidade que os vilãos néscios e ordinários. Quem não quer dar presentes, ignora o que é amar. Aquele que deseja se esforçar no amor deve cuidadosamente evitar a avareza: se por um olhar ou um sorriso doce e sereno entrega seu coração inteiro, pode deixar seus bens abandonados, depois de ter feito tão rico dom.
– Vou lembrar tudo o que até agora te disse, pois é muito mais fácil reter a lição quando ela é breve: quem desejar fazer do Amor seu senhor, deve ser cortês e humilde, vestir-se com elegância, ser alegre e conseguir que o apreciem por sua generosidade.
– Como penitência, digo que não deixe de pensar no Amor dia e noite, e não te envergonhes por isso. Pensa sem cessar nele e lembra da doce hora que tanto te demora. E para que sejas um leal enamorado, quero e ordeno que tenhas todo o teu coração em um só lugar, de forma que não estejas dividido, mas inteiro e sem enganos, pois não gosto das divisões. Quem tem seu coração em vários lugares de uma vez, sempre levará a pior parte. Não temo pelo que põe seu coração inteiro em um só lugar e, por isso, te ordeno que faças assim, mas procura não entregá-lo, pois se agires dessa maneira, considerarei uma perfídia de tua parte.
– Entrega teu coração como um presente, livre, e com ele alcançarás maior mérito, pois para compensar uma coisa presenteada, deve se dar um alto prêmio. Assim entrega-o sem reticências, de boa vontade, porque se deve estimar muito o que se dá com feições alegres, e eu não aprecio nada que se dá contra a própria vontade.
– Depois de entregar teu coração de acordo com os conselhos acima, começarão a chegar aventuras difíceis e graves de suportar para os enamorados. Freqüentemente, ao recordar teu amor, te verás obrigado a afastar-te das gentes, para que não se dêem conta da dor que sofres. Retirar-te-ás para um lado, só, e então virão suspiros e lamentos, temores e muitos outros males. Sentir-te-ás atacado de muitas formas distintas: terás calor e logo sentirás o frio; estarás ruborizado e depois pálido, pois nunca houve febres tão más, nem as diárias, nem as quartas. Assim terás provado os sofrimentos amorosos antes de ir.
– Em outras ocasiões, ficarás meditativo e permanecerás imóvel durante muito tempo, como se fosses uma estátua muda, que nem se move, nem se agita: não moverás um pé, nem as mãos ou os dedos, não virarás os olhos para nenhum lugar, tampouco falarás. Ao final, voltarás a ti, sobressaltar-te-ás estremecendo, como quem tem medo, e lançarás profundos suspiros do coração, pois assim o têm feito todos os que provaram esses males que te preocupam.
– É justo que, a seguir, recordes que tua amiga está longe. Então dirás: “– Ai, Deus! Que mal suporto não indo ao encontro de meu coração! Por que meu coração se foi só? Agora penso e não encontro resposta, posso enviar os olhos para que acompanhem o coração, mas se não o fazem, não valorizo nada do que vêem. Devem ficar aqui? Não, absolutamente. Devem visitar o objeto dos apaixonados desejos do coração. Bem posso pensar que sou preguiçoso ao manter-me tão afastado de meu próprio coração. Que Deus me ajude! Devo estar louco. Vou embora logo, não demorarei mais, pois não voltarei a estar satisfeito, até ter notícias.”
– Então te colocarás a caminho, dirigindo-te até lá de tal forma que várias vezes equivocar-te-ás, e em vão darás teus passos: o que buscarás não verás, e terás que regressar sem conseguir nada, cabisbaixo e meditativo.
– Voltarás a te encontrar mal. De novo sentirás suspiros, pontadas e tremores mais agudos que os espinhos do ouriço; aquele que os desconhece, que pergunte aos leais enamorados. Não conseguirás acalmar teu coração e uma vez mais irás tentar ver o que tanta atenção te causa. Por fim, se conseguires conquistá-la, te ocuparás somente de saciar e satisfazer teus olhos. Terás uma grande alegria em teu coração pela beleza que estarás contemplando. Porém, de tanto admirar, teu coração se queimará e se desfará, pois farás com que se excite o fogo ardente: aquele que mais olha a quem quer, mais incendeia seu coração e o expõe às chamas como se o envolvesse com toucinho. Esse toucinho é o que arde e faz arder o fogo que enamora as gentes. Os enamorados estão acostumados a seguir essa chama, que os queima e os consome. Ao sentir o fogo mais perto, vão até ele com maior ímpeto. As chamas são tamanhas que fazem com que se consuma nelas aquele que se detêm para contemplar sua amiga. Assim acontece quando se aproxima muito dela, quando se está mais disposto a amar. Todos o sabem, sábios e estúpidos: o mais próximo do fogo arde com maior facilidade.
– Enquanto te encontras alegre não desejarás te afastar de seu lado. Mas quando não te restar outro remédio, recordarás sem cessar o que vistes, e pensarás que cometestes um grande equívoco ao não se atrever a dirigir-lhe a palavra, pois não tivestes valor nem ousadia para fazê-lo e ficastes ao seu lado sem dizer nada, como louco e torpe. Considerarás um grave erro não ter chamado a formosa antes de ela ir. Voltarás muito contrariado, pois se tivesses conseguido obter pelo menos uma gentil saudação, a estimarias em cem marcos.
– Começarás a maldizer-te e buscarás uma oportunidade para ir novamente à rua onde viste aquela a quem não atrevestes a dirigir a palavra. Com muito prazer te encaminharias à sua casa se tivesses um motivo. A partir desse momento, todos os caminhos e todas as tuas idas e vindas passarão por aqueles arredores. Mas te oculta das gentes com cuidado e busca um motivo diferente do que na verdade te faz ir por ali, pois é prova de bom senso saber ocultar-se.
– Se por casualidade te encontras com a formosa em tal situação que não te resta outro remédio a não ser saudá-la e falar com ela, te mudarás a cor, te estremecerás o sangue, te falharás a palavra e o entendimento quando fores começar a falar; e, se conseguires avançar o suficiente para atrever-te a falar, não conseguirás dizer duas coisas das três que pensavas, pela vergonha que sentirás diante dela. Não há ninguém tão seguro que ao chegar a essa situação não esqueça muitas coisas, a não ser que minta: os falsos amantes empregam palavras a seu gosto, sem medo. São muito mentirosos: pensam uma coisa e dizem outra.
– Quando tiveres terminado de falar sem ter dito uma palavra má, pensarás que te equivocastes, pois esquecestes de dizer algo que poderia ser conveniente. Então te sentirás martirizado: é o combate, é a fogueira, é a batalha que nunca termina. Não haverá nenhum enamorado que tenha buscado falar com sua dama e tenha encontrado a paz ou o fim dessa guerra, a não ser que eu o queira.
– Ao cair a noite, sentirás mais de mil náuseas. Deitarás em tua cama, mas não poderás descansar, pois quando começares a dormir, tremerás, tiritarás e estremecerás. Virarás de lado, de boca para cima, de boca para baixo, como quem padece de dor de dente. Recordarás o rosto e as maneiras daquela que não tem par. E ainda te digo mais: chegarás a pensar que tens entre os braços aquela de rosto claro, completamente desnuda, como a houvesse convertido em amiga e companheira. Serão vãs imaginações, alegrias sem sentido, resultado do enlouquecimento por agradáveis lembranças, nas quais há somente mentiras e fábulas. Pouco tempo poderás permanecer em tal estado; logo começarás a chorar, dizendo: “– Deus, o que tenho sonhado? O que é isso? Onde me encontrava? De onde me vem tal pensamento? Gostaria que voltasse a ocorrer dez ou vinte vezes diárias: isso me saciou e me encheu de alegria e gozo, mas sua brevidade vai me causar a morte. Deus! Conseguirei me ver em tal situação? Agradar-me-ia que assim o fosse, ainda que morresse ao final. A morte não me preocuparia se viesse entre os braços de minha amiga. O Amor me atormenta e me martiriza sem cessar. Por isso me queixo e lamento freqüentemente. Mas se conseguir obter a alegria total de minha amiga, terei conseguido uma boa recompensa por meus males. Ai de mim, peço em demasia! Não devo ser muito rápido, pois aspiro a tanto: aquele que pede uma estupidez é normal que tenha seu pedido negado. Não sei como me atrevi a dizê-lo! Muito mais nobres e valiosos que eu se sentiriam honrados com uma recompensa menor, mas se a bela me concedesse o prazer de um só beijo, seria uma recompensa mais que suficiente pelas penas que tenho sofrido. É coisa difícil de conseguir. Devo considerar-me um louco, pois coloquei meu coração em um lugar onde não conseguirei gozo nem proveito. Só digo loucuras e estupidez, pois mais vale um olhar seu que todo o deleite que outra possa dar. Com muito prazer a veria, que Deus me ajude, pois ela curaria quem a visse só um breve instante. Ai, Deus! Quando amanhecerá? Há muito que estou nessa cama. Não aprecio esse descanso, pois não tenho o que desejo. Estar deitado é um tédio se não se dorme ou descansa. Incomoda-me e desagrada-me que não desponte o alvorecer e termine a noite. Se fosse dia, não demoraria em levantar-me. Ah, Sol! Por Deus, tem pressa, não demores nem te atrases, faz com que se vá a noite escura, com seus pesares que já duram demasiadamente.”
– Deste modo, se chegar a conhecer o mal de amar, passarás a noite com pouco repouso. Quando já não puderes suportar continuar velando na cama, arrumar-te-ás, vestir-te-ás, e até te calçarás antes que tenha amanhecido. Escondendo-te, com chuva ou com gelo, dirigir-te-ás à casa de tua amiga, que estarás dormindo, sem pensar em ti.
– Primeiro irás à porta de trás, para ver se ficou aberta. Permanecerás ali fora, sozinho, sob a chuva e o vento. Depois irás à porta da frente: se encontrares uma fresta numa janela ou numa fechadura, aproxima o ouvido e escuta se os de dentro dormem. Se a bela estiver acordada, aconselho-te e recomendo que procures que ela ouça tuas queixas e lamentos, para que se inteire de quanto te custa não poder descansar pelos desejos que tens de que seja tua amiga. Toda mulher, se não é muito dura, deve apiedar-se de quem suporta tais sofrimentos por ela.
– Agora vou te dizer o que é que farás por amor do santo lugar que não te permite nenhum repouso: quando regressares, vai à porta e, para que ninguém te veja diante da casa ou pela rua, volta antes que tenha amanhecido.
– Estas idas e vindas, estas vigílias e meditações fazem com que as peles dos enamorados emagreçam sob as roupas, como poderás comprovar por ti mesmo: o amor não deixa ao leal amante nem cor, nem gordura. Nisso se distinguem sem dificuldade aqueles que traem suas damas: para homenageá-las, dizem que têm perdido a vontade de comer e beber, mas eu vejo esses embusteiros mais gordos que abades ou priores.
– Vou te dar e impor mais outra ordem: para que a criada da casa te tenha por generoso e diga que vales muito, dê-lhe qualquer adorno. Deves honrar e querer tua amiga e a todos os que a acompanham, pois através deles podes receber grande proveito. Quando aqueles em quem ela mais confia mais lhe contam que te encontraram valente, cortês e de trato afável, terás conseguido que a dama te queira muito mais.
– Procura não sair de tua terra, mas se não tens outro remédio senão fazê-lo, procura que teu coração fique, e pensa em regressar o quanto antes. Não deves tardar muito: mostra que tens grandes desejos de ver aquela que possui a custódia de teu coração.
– Com isso já te disse tudo o que deve fazer o enamorado que entra em meu serviço. Cumpre com minhas ordens, a partir de agora, se queres obter os favores de tua bela.
Depois das recomendações que me fez o Amor, eu lhe perguntei:
– Senhor, de que maneira, como podem os enamorados suportar esses sofrimentos que haveis contado? Sinto um autêntico pavor. Como pode viver, como resiste quem está continuamente entre dores e chamas, entre lamentos, suspiros e lágrimas, que a todo momento e a cada instante se encontra preocupado e com insônias? Que Deus me ajude; admira-me que um homem, ainda que fosse de ferro, pudesse viver um ano em tal inferno.
O Deus do Amor me respondeu, dando uma boa resposta à minha pergunta:
– Bom amigo, pela alma de meu pai, ninguém tem um bem sem pagá-lo; mais se estima uma propriedade quanto mais cara custou, e com maior gosto se recebem os bens pelos quais mais sofreu. É certo que não há nada comparável ao que passam os enamorados. Do mesmo modo que não se pode esvaziar o mar, é impossível contar os males do amor em um livro ou em uma estória.
– Em qualquer caso, os enamorados sobrevivem, pois lhes é necessário; todos fugimos da morte. O que está recluso em um sombrio cárcere cheio de vermes e imundícies, que não tem mais que um pão de cevada ou aveia, não morre de aflição: a Esperança lhe dá consolo, e ele pensa em se ver livre por alguma afortunada casualidade. O mesmo acontece ao prisioneiro do Amor. Espera se salvar e tal esperança o reconforta, lhe dá ânimo e forças suficientes para entregar seu corpo ao martírio. A Esperança o ajuda a suportar os inumeráveis males em troca de uma alegria que vale cem vezes mais. A Esperança vence o sofrimento e faz com que os enamorados sobrevivam. Bendita seja a Esperança, que assim os mantém! A Esperança é muito cortês: até o fim não abandona o homem honrado, apesar dos perigos e das aflições, e faz com que o ladrão que vão enforcar espere misericórdia a todo o momento. Ela te protegerá e não sairá do teu lado sem ter te socorrido se for necessário. Além disso, te presenteio outros três bens que fornecem um grande alívio aos que se encontram em meus laços.
– O primeiro dos bens que aliviam os que caem nos laços do Amor é Doce Pensamento, que lhes recorda as concessões da Esperança. Quando o enamorado se lamenta e suspira, entre dores e martírios, não demora muito em aparecer Doce Pensamento, que despedaça a tristeza e a dor e, com sua chegada, faz com que o enamorado recorde a alegria que lhe prometeu Esperança. Depois, lhe mostra os olhos sorridentes, o belo nariz que não é nem muito grande nem pequeno, a boquinha de uma cor viva, cujo sopro é tão apreciado. Então, lhe alegra em recordar a beleza de cada um de seus membros. O deleite se duplica com a lembrança de um sorriso, de um bom rosto ou de um doce olhar que sua querida amiga tenha lhe dedicado. Assim, Doce Pensamento alivia as dores e as tristezas do Amor. Presenteio-te. E vou te dar outro que não é menos agradável: se o rechaças, parece-me que serás difícil de contentar. Trata-se de Doce Conversação, que em muitas ocasiões socorreu a numerosos jovens e damas, pois aquele que ouve falar de seu amor imediatamente se alegra. Recordo que por isso uma dama muito enamorada dizia estas corteses palavras em uma canção: “Sinto-me afortunada / Quando me falam de meu amigo / Por Deus! Cura-me / Quem dele me fala, diga o que disser”. Esta dama sabia quem era Doce Conversação e a havia conhecido sob diversos aspectos.
– Aconselho-te e desejo que busques um companheiro prudente e discreto, a quem possas revelar seus pensamentos e descobrir teu sentir. Ele te ajudará muito. Quando o mal de amor te causar profundas angústias, recorrerás a ele para te reconfortar; falareis juntos da bela que te roubou o coração. Contar-lhe-ás tua situação e lhe pedirás que te aconselhe de que modo poderias fazer algo que seja agradável à tua amiga. Se aquele que vai ser teu amigo entregou seu coração a um bom amor, então sua companhia será muito mais valiosa. É razoável que te diga se sua amiga é donzela ou não; e que te indique quem é e como se chama. Assim não deverás temer o que pensas de tua amiga ou que te enganes, mas terão confiança mútua, já que é muito agradável contar com um homem a quem nos atrevemos a dizer segredos e confidências. Receberás com muito prazer tal deleite e te considerarás bem recompensado quando o provares.
– O terceiro bem procede da visão: é Doce Olhar, que permite que possam resistir aqueles que têm amores distantes. Aconselho-te que te mantenhas próximo de tua dama com Doce Olhar; assim, seu consolo não tardará em chegar, pois é agradável e prazeroso aos enamorados..
– Os olhos têm um encontro muito bom pela manhã quando Deus lhes mostra o santuário precioso que tanto desejam: o dia que podem ver. Não lhes ocorre nenhuma desgraça digna de consideração; não temem nem o pó, nem o vento, nem alguma outra coisa difícil de suportar. E quando os olhos desfrutam de tal prazer, estão tão bem educados e acostumados, que não gozam sozinhos, mas procuram que o coração também se regozije, de modo que o aliviam de suas penas; pois os olhos, como autênticos mensageiros, enviam imediatamente ao coração as notícias do que vêem e, graças à alegria que produzem, o coração esquece suas aflições e sai das trevas nas quais se encontrava. Do mesmo modo que a luz faz com que fuja a escuridão, Doce Olhar afasta as trevas em que jaz o coração que languesce dia e noite por culpa do amor, e as dores terminam quando os olhos contemplam o que o coração deseja.
– Segundo me parece, já te expliquei o que tanto te assustava, e contei sem mentir nada quais são os bens que podem proteger os enamorados, salvando-os da morte. Agora sabes quem pode te dar certo valor, pois ao menos terás a Esperança e não te faltarão Doce Pensamento, Doce Conversação e Doce Olhar. Quero que cada um deles te proteja até que possas aspirar a algo melhor, pois mais adiante obterás outros bens que não são menores que esses, e sim muito maiores. Por enquanto, te dou estes.
Quando o Amor terminou de dizer-me o que quis, fui incapaz de pronunciar uma só palavra antes que desaparecesse. Fiquei assustado ao ver que junto a mim não havia ninguém. Sentia uma grande dor em minhas feridas e me dei conta de que não poderia curar-me se não fosse com a rosa à qual havia entregue meu coração e todo meu ser. Para obtê-la, não confiava em ninguém além do Deus do Amor, e estava seguro de que seria impossível consegui-la sem a sua ajuda.
Os roseirais estavam cercados por uma cerca, como era normal. Eu estava disposto a entrar em busca da flor, cuja fragrância era superior a qualquer bálsamo, mas tinha medo de que alguém me chamasse a atenção. Parecia que os roseirais desejavam me levar.
Assim, enquanto pensava se atravessaria a cerca, vi que se aproximava de mim um jovem rapaz, belo e elegante, sem nenhuma imperfeição. Chamava-se Doce Abrigo, filho da esplêndida Cortesia. Com delicadeza, ele deixou-me livre o caminho e disse-me amavelmente:
– Meu bom amigo, por favor, passai esta cerca para sentir o perfume das rosas. Asseguro-te que não receberás nenhum dano por isso e que não enfrentarás nenhuma baixeza, contanto que te guardes de cometer loucuras. Se puder te ajudar em algo, não discutirei, pois estou disposto a servir-te: digo isso com toda franqueza.
– Senhor – disse a Doce Abrigo – aceito tua oferta com muito prazer e dou graças pelo favor que me ofereceste, pois fê-lo movido por uma grande nobreza. E já que assim o desejas, estou disposto a aceitar teu serviço.
Figura 15
Ricamente trajado, Doce Abrigo (à esquerda), oferece delicadamente sua mão esquerda ao poeta e o ajuda a entrar dentro da cerca onde se encontra a rosa. A cerca é alta, e o poeta precisa levantar sua roupa para ultrapassá-la. Filho da Cortesia, Doce Abrigo é o falso amigo da virgindade, pois com bons sentimentos e sem malícia ajuda o amante a penetrar no recinto do amor. Sua figura é uma alegoria que representa o fracasso ou o sucesso dos amantes antes mesmo deles iniciarem um diálogo. Doce Abrigo é muito mais que um símbolo cortês de civilidade e urbanidade: é algo que nenhuma mulher nobre recusaria da parte de um enamorado. Em suma, Doce Abrigo simboliza a preparação adequada para o amor por parte do homem: delicadeza para com a amada, gentileza, cortesia e carinho.
Assim, atravessei a cerca entre sarças e espinhos, que eram abundantes e, acompanhado por Doce Abrigo, comecei a andar até a rosa que exalava o melhor perfume de todas as demais. Asseguro-vos que me agradou muito aproximar-me tanto da flor. Quase pude alcançá-la com a mão.
Doce Abrigo serviu-me bem ao fazer com que visse a rosa de tão perto, ainda que naquele lugar estivesse escondido um vilão – que a má vergonha lhe alcance! Chamava-se Rejeição e era vigilante e guardião de todos os roseirais. O covarde se ocultava num canto, coberto pela erva e pela folhagem, para espiar e surpreender a quem estendesse as mãos até as rosas.
Esse cão não estava só, tinha como companheiros a Má Língua, a murmuradora, a Vergonha e o Medo. De todos eles, era Vergonha a que mais valia: sabe-se, segundo contam os que conhecem bem o seu parentesco e a sua linhagem, que era filha da prudente Razão e que seu pai se chamava Azarento, um diabo tão odioso e feio que a Razão não chegou a se deitar com ele, mas concebeu a Vergonha pelo olhar. Quando Deus a fez nascer, a Castidade – senhora das rosas e de seus botões – viu-se atacada por malvados ladrões, necessitando de ajuda, pois Vênus havia entrado em suas possessões para levar as flores e os botões, como costumam fazer dia e noite. Então, a Castidade, que se encontrava perseguida por Vênus, pediu à Razão que lhe desse a sua filha. Como se encontrava desamparada, pediu à mesma, que não tardou em fazer-lhe um favor emprestando-lhe sua filha Vergonha, que é honrada e honesta. E para proteger melhor os roseirais, fez com que o Zelo e o Medo a socorressem, pois eles obrigam a cumprir seus desejos.
Assim, eram quatro os guardiões das rosas, os quais preferiam ser golpeados antes que alguém levasse alguma rosa ou botão. Eu teria chegado bem perto dos meus propósitos se não estivessem me vigiando, pois Doce Abrigo, nobre e agradável, esforçava-se em cumprir o que havia dito e, assim, em fazer o que via que podia agradar-me. Incessantemente, ele me impulsionou para que me aproximasse do botão e tocasse o roseiral, que estava carregado de flores.
Figura 16
Já dentro da cerca, o poeta pede a Doce Abrigo para cheirar a rosa. Por ser filho da Cortesia, Doce Abrigo atende a seu pedido. O poeta acredita que sua aventura chegou ao fim após receber o botão da rosa. Assim, atrevido, pede a rosa - repare na gesticulação das mãos do personagem: sua mão direita aponta para Doce Abrigo, indicando que está conversando com ele; sua mão esquerda repousa sobre seu peito, sinal de seu pedido. Com sua mão esquerda aberta em direção ao poeta, Doce Abrigo rechaça seu pedido. A postura dos pés também indica a elegância do início do diálogo entre ambos, antes que Doce Abrigo se assustasse com o pedido do poeta. Por fim, observe que Doce Abrigo possui agora cachos dourados, talvez pelo fato de portar em sua mão esquerda a rosa.
Deu-me permissão para fazer tudo isso, pois pensava que esse era o meu desejo. De sua parte, tomou uma folha verde que crescia perto da rosa e me presenteou, pois ela havia nascido junto à flor.
Tive uma grande alegria ao receber essa folha, pois, a partir deste momento, me considerei amigo íntimo e confidente de meu companheiro e, por isso, pensava que já havia chegado à minha meta. Então, senti o valor suficiente e o atrevimento necessário para dizer-lhe que o Amor havia me aprisionado e ferido:
– Senhor – disse-lhe – nunca voltarei a ter alegria se não for por uma coisa: no coração tenho fixa uma pesada enfermidade, mas não sei como explicar-lhe, pois temo que vos enfadeis; preferiria ser despedaçado em pedaços com facas de aço antes de causar-vos qualquer desgosto.
– Dizei-me teus desejos, pois não me molestará nada do que digas.
– Bom senhor, sabes que o Amor me atormenta com dureza. Não vou mentir para ti: ele tem me causado cinco feridas no corpo e a dor não cessará até que eu consiga a rosa mais perfeita de todas - é minha morte e é minha vida; nada desejo tanto.
Doce Abrigo se assustou e então me disse:
– Irmão, pensas algo impossível. Como? Queres minha desonra? Haverias me feito passar por estúpido se tivesses colhido o botão do roseiral; não é razoável tirá-lo de seu lugar. Cometes uma vilania pedindo-o! Deixa que cresça e que se torne mais formoso, pois nenhum homem vivo arrancá-lo-ia do roseiral que o tem sustentado, tanto o quero!
Nesse momento, saltou a infame Rejeição do lugar em que estava escondida. Era grande, negra e peluda, tinha os olhos acesos como brasas, o nariz enrugado e o rosto abominável. Então, ela começou a gritar como uma louca:
– Doce Abrigo, porque trouxeste este jovem próximo aos roseirais? Por Deus, fizeste mal, pois ele pensa em prejudicá-los. Maldito sejas não tu, mas quem o trouxe a este jardim! Aquele que serve a um traidor tem a recompensa que merece. Pensavas fazer-lhe um favor enquanto ele te desejava afrontas e desavenças. Anda jovem, vá daqui! Com gosto dar-te-ia a morte! Doce Abrigo conhecia-te mal e se esforçava em servir-te, enquanto tentavas enganá-lo. Não confiarei em ti, pois manifestaste a traição que guardavas oculta.
Não me atrevi a permanecer naquele lugar por culpa do odioso vilão negro que me ameaçava atacar daquela maneira. Rapidamente ele me obrigou a retroceder com muito medo para o outro lado da cerca, enquanto o malvado movia a cabeça dizendo que se eu voltasse a entrar me faria uma má ação.
Então, Doce Abrigo fugiu e eu fiquei amedrontado, aflito e cheio de vergonha: estava arrependido de ter dito o que pensava. Recordei minha loucura e vi meu corpo livre da dor, da pena e do suplício, mas o que mais me entristecia era não ter me atrevido a passar a cerca.
Quem não amou não conhece a dor, pois quando se ama padece-se grandes sofrimentos. O Amor me fez provar a pena que me prometera. O coração seria incapaz de pensar e a boca não poderia dizer a quarta parte da dor que eu sentia. Quando recordo que tive que me afastar assim da rosa, meu coração quase se destroça.
Por muito tempo permaneci nesse estado, até que a dama do lugar que estava me olhando do alto de sua torre me viu aflito. Chamava-se Razão. Desceu de lá e veio até a mim. Não era jovem, nem grisalha, nem alta, nem baixa, nem muito magra, nem excessivamente gorda. Seus olhos brilhavam como duas estrelas, e tinha na cabeça uma coroa; parecia ser uma pessoa de elevada condição. Por sua aparência e seu rosto parecia ter sido feita no Paraíso, pois a Natureza seria incapaz de realizar obra comparável.
Se o texto não mente, saibais que Deus a criou no firmamento à Sua imagem e semelhança, e lhe concedeu o poder e a força para manter o homem distante de toda a loucura, contanto que lhe prestasse atenção.
Figura 17
Triste por ter dito o que pensava, o poeta medita (suas mãos, voltadas para o seu peito, indicam seu estado melancólico). É quando então que surge a Razão, que porta uma belíssima coroa dourada, além de um colar e um cinto também dourados. Representando a deusa Minerva (ou Palas Atena), elegantemente ela sai do templo da Sabedoria (à direita), representado por uma imponente torre de menagem que desponta e ajuda a proteger a rosa, circundando o recinto. Com seus sábios conselhos, ela adverte o poeta para os perigos do amor, mas, como seus conselhos são em vão. Para tentar ainda mais o poeta, a roseira está ainda mais bela, colorida, e suas folhas e flores se esparramam ao fundo do cenário, oferecendo um sedutor contraponto à Razão. A Razão combatendo o Amor é um tema literário recorrente da época (em Chrétien de Troyes, por exemplo, em seu Cavaleiro da Charrete), e tanto Ovídio quanto André Capelão utilizam esta alegoria em seus textos.
Enquanto eu estava assim me lamentando, a Razão começou a falar:
– Meu bom amigo, tua insensatez e tua juventude fazem com que te aflijas e te entristeças. Em má hora conheceste o bom tempo de maio, que fez com que teu coração se alegrasse em demasia; em má hora foste buscar uma sombra no jardim cuja chave é guardada por Ociosa, a qual lhe abriu a porta. Está louco quem trava contato com ela, pois sua companhia é muito perigosa; ela traiu-te e mentiu para ti: o Amor nunca teria te encontrado se Ociosa não tivesse te conduzido ao formoso jardim do Lazer. Trabalhaste como um louco e agora tens que agir para que tudo seja reparado; procura não crer novamente em um conselho que te leve a cometer loucuras, mesmo que em boa hora as faz quem depois se corrige. Não deve se surpreender que os jovens se precipitem a isso.
– Agora quero dizer-te e aconselhar-te a esquecer o Amor, por cuja culpa te vejo fraco, abatido e atormentado. Não sei como poderás te curar ou sarar se não o fizeres, pois a cruel Rejeição quer combater contra ti sem deixar-te repousar: não te confrontes com ela. A Rejeição é pouco importante se comparada à minha filha Vergonha, que é a que defende e guarda as rosas com grande habilidade: deves ter medo dela, pois será a que pior se comportará contigo.
– Com elas está a Má Língua, que não permite a ninguém tocar as flores. Antes que dê tempo de fazê-lo, considere trezentos lugares diferentes, pois vais encontrar com gente temível. Pense o que é melhor: abandonar teu propósito ou continuar atrás do que te faz viver com tal sofrimento, que é o mal que se chama amor e no qual há somente loucura. Loucura, sim, por Deus! O enamorado não pode fazer nenhum bem, nem prestar atenção em ninguém: se é clérigo, perde seu saber; se se ocupa de outro ofício, mal pode concluí-lo. E, sobretudo, padece mais que um ermitão ou que um monge branco. Seu sofrimento é desmedido e sua alegria dura pouco. Para o enamorado, alcançar a alegria é uma aventura, pois, conforme vejo, muitos se esforçam para consegui-la e fracassam totalmente no final. Não quiseste escutar meus conselhos quando te entregaste ao Deus do Amor: teu coração volúvel te impulsionou a cometer semelhante loucura, ou então fizestes sem refletir; mas ao abandoná-lo mostrarias uma grande sabedoria. Portanto, despreza e rejeita o amor que assim te faz viver, pois a loucura cresce sem cessar se não é detida a tempo. Coloca um freio firmemente nos dentes, doma e freia teu coração, esforça-te e defende-te dos pensamentos que nascem em teu peito, pois aquele que crê em seu coração não deixa de cometer loucuras.
Ao ouvir tais conselhos, respondi irado:
– Senhora, suplico-te que deixes de dar-me conselhos. Disse-me para frear meu coração para que o Amor não se apodere dele, mas por acaso crês que o Amor o consentirá e permitirá que eu domine meu coração, que lhe pertence por completo? Não posso fazer o que pedes, pois o Amor tem domado meu coração tão bem, que esse só obedece à suas ordens, não às minhas; e o governa com tal firmeza que fez uma chave para mantê-lo trancado. Deixa-me tranqüilo agora, pois em vão estás gastando o teu francês. Preferiria morrer que ser acusado de falsidade e traição pelo Amor. Ao fim de tudo, quero louvar-me por ter sido um leal amante ou lamentar-me. Por isso, me incomodo com quem me dá conselhos.
Diante de tais palavras, a Razão se foi, pois viu que suas recomendações não me fariam mudar de idéia. De minha parte, fiquei cheio de tristeza e de dor; chorava e me lamentava com freqüência, pois não sabia como encontrar um remédio. Então, recordei que o Amor dissera para buscar um companheiro para quem eu pudesse revelar todos os meus pensamentos, pois isso aliviaria a minha dor.
Então me lembrei que tinha um companheiro muito fiel: chamava-se Amigo e era o melhor companheiro de todos que tive.
Figura 18
A Razão abandona o poeta: ela não conseguiu convencê-lo a abandonar o Amor. Nesse momento, ele recorda um dos conselhos do Amor: buscar um amigo para ouvi-lo. O poeta fala de seus dissabores ao Amigo (suas mãos, uma vez mais, estão sinalizando suas palavras: o indicador da mão direita aponta para a palma da mão esquerda, sinal que mostra que o poeta conta, narra, comenta seu sofrimento). Esse novo personagem do Romance da Rosa representa a confiança em alguém, o confidente, a pessoa que escuta, que consola o aflito de amor (na tradição, Ovídio não concorda que se deva contar a alguém seus problemas amorosos; André Capelão diz o contrário).
Fui rapidamente à sua procura. Mostrei-lhe, conforme os conselhos do Amor, os obstáculos que me mantinham imóvel e, assim, queixei-me de Rejeição, que quase me devorou, que pôs Doce Abrigo em fuga quando me viu falar com ele da desejada flor, e que me disse que se eu voltasse a ultrapassar a cerca, pelo motivo que fosse, pagaria caro.
Depois de conhecer a verdade, Amigo não me assustou, mas me disse:
– Companheiro, ficai tranqüilo, não te preocupes. Faz muito tempo que conheço Rejeição: ela sabe injuriar, afrontar e ameaçar os enamorados que estão começando; sei disso há muito tempo. Se tiver se comportado mal convosco, o fará de outra forma mais adiante. Conheço-a como se fosse uma moeda: suaviza-se com boas palavras e com súplicas. Vou lhe dizer o que deves fazer: aconselho que peças que te perdoe de coração e também, por favor, sua crítica: promete-lhe que a partir de agora não farás nada que a desagrade. Isso é uma coisa que muito a apazigua, a acalma e a agrada.
Amigo me reconfortou com suas palavras, deu-me valor e desejou que eu fosse me apaziguar com Rejeição. Assim, cheguei timidamente à presença dela, desejoso de conseguir a paz, mas não passei a cerca, pois ele me havia proibido a entrada. Encontrei-a de pé, com um aspecto enfadonho e irado, segurando na mão um bastão de espinho. Inclinei a cabeça e lhe disse:
– Senhora, venho para pedir-te piedade. Sinto ter te aborrecido antes, mas estou disposto a reparar isso de acordo com teus desejos. O Amor me obrigou a fazer o que fiz; eu não pude retirar de meu coração a vontade do Amor, mas prometo que nunca mais voltarei a desejar nada que te incomode: prefiro antes suportar meus sofrimentos que fazer qualquer coisa que te desagrade. Suplico-te que tenhas piedade de mim e que aplaques vossa cólera, que me produz grande temor; juro e prometo que sempre me comportarei de tal forma contigo, que não vos causarei nenhum outro pesar. Por isso, rogo-te para que me concedas o que não podes me proibir: permite-me amar, não te peço outra coisa. Cumprirei todos os teus desejos se me consentir isso; não podes me impedir e não quero enganar-te a respeito, pois continuarei amando, já que isso me agrada, incomode a quem incomode ou goste quem goste. Contudo, nem mesmo por meu peso em prata queria desagradar-te.
Figura 19
Incentivado pelo Amigo, o poeta se enche de coragem e tenta uma vez mais pedir piedade à Rejeição – representada no texto por um vilão – personagem que tomava conta de todos os roseirais do Jardim do Amor. Anteriormente Guilherme de Lorris já havia definido bem a natureza da Rejeição, isto é, do vilão: covarde! A tradição literária medieval representava os camponeses – os rústicos, os vilões – como pessoas semi-animalescas, bestiais, sujas. “Isto fica claro quando se analisa a evolução dos termos aplicados ao camponês: pouco a pouco, um sentido pejorativo tomou conta do universo semântico que definia o homem da terra, especialmente as palavras rusticus – camponês, mas desde o século VI como sinônimo de ignorante, iletrado, em suma, a massa desprovida de cultura – e villani (vilão) – originalmente apenas o residente da villa, mas no século XIV já com o sentido de fealdade moral. Os rustici também eram retratados pelos letrados com profundo desprezo, ridicularizados na literatura e na arte, nas chansons de geste, nos contos satíricos e nos poemas goliárdicos – os goliardos (ou vagants) eram clérigos marginais e urbanos que escreviam poesias criticando asperamente a sociedade de sua época.” – (COSTA,2002). No texto, o melhor companheiro da Rejeição é a Má Língua, a murmuradora. Assim, o iluminista se baseia nessa tradição literária para representar a Rejeição como um repugnante camponês, com suas feições rudes e seu porte físico grotesco (na iluminura, o vilão segura um longo bastão para desencorajar os amantes).
Rejeição mostrou-se dura e reticente na hora de me perdoar e de extirpar sua cólera, mas no fim me perdoou graças às minhas abundantes súplicas, e me disse com breves palavras:
– Seu pedido não me incomoda e não desejo te rejeitar: fica seguro de que não estou aborrecido contigo; se amas, o que me importa? Isso não me produz nem frio, nem calor. Continua amando, mas mantenha-se distante de minhas rosas a todo o momento, pois não terei nenhuma compaixão se tu atravessares a cerca.
Assim, me concedeu o que havia pedido, e eu fui imediatamente contar ao Amigo, que ao ouvir se alegrou como um bom companheiro.
– Agora, disse-me, teu assunto será melhor. Rejeição se mostrará mais doce, pois assim costuma fazer com muitos, depois de ter manifestado sua arrogância. Se a encontrares em um bom momento, ela se compadecerá de vossas penas; enquanto isso, tem paciência e espera até o momento oportuno. Sei pela prática que com paciência se vence e se domina a qualquer malvado.
Doce foi o consolo que me deu o Amigo, pois desejava meus progressos tanto quanto eu mesmo. A seguir, separei-me dele e retornei à cerca protegida pela Rejeição, pois já demorava a ver a rosa, única alegria que podia ter.
A Rejeição comprovava incessantemente se eu mantinha a promessa; enquanto eu, que temia suas ameaças, não me atrevia a fazer nada que a incomodasse e me esforçava para cumprir suas ordens, alegrá-la e atraí-la para o meu lado. Porém, me contrariava muito sua demora em me perdoar: viu-me muitas vezes chorar, lamentar e suspirar porque deixava que eu me consumisse esperando junto à cerca, que eu não me atrevesse a passar para ir em busca da rosa, e se mantinha firme até que estivesse segura, por meu comportamento, de que Amor estava me tratando com dureza e de que não existia em mim o menor engano nem deslealdade. Mas ela era tão cruel, que ainda assim não se dignava em suavizar seu trato, apesar das minhas queixas e lamentos.
Enquanto me encontrava nestas penas, Deus me trouxe a Franqueza acompanhada pela Piedade. Sem mais demora se dirigiram à Rejeição, pois as duas estavam dispostas a me ajudar com muito prazer, já que viam que era necessário.
Figura 20
A iluminura mostra a Rejeição agora representada por uma antipática velha de nariz adunco (a segunda da direita para a esquerda), cercada pela Piedade (a monja no centro), pela Franqueza (a dama à direita) e pelo Amor. O poeta, ansioso, aguarda (à esquerda), enquanto a Rejeição gesticula e se explica às alegorias dos sentimentos da dama desejada. Quando o poeta insistentemente foi rogar à Rejeição (isto é, à dama), esta não pôde ficar impassível, o que fez com que surgissem os novos e esperançosos sentimentos da Piedade e da Franqueza. A iluminura acima é uma das mais efusivas do manuscrito do Romance da Rosa, pois através da gesticulação das mãos sugere um acalorado debate entre as alegorias. O próprio poeta, com os braços e mãos em movimento, parece conversar consigo próprio, já que aguarda com muita angústia o desenlace entre os novos sentimentos da dama e sua Rejeição.
A primeira a tomar a palavra foi a Franqueza, e lhe dou graças por isso, que disse:
– Rejeição, e que Deus me ajude, és injusta com este enamorado que estás maltratando. O que fazes é próprio dos vilões, pois, que eu saiba, ele ainda não pecou em nada. Se Amor o obriga a amar à força, é isso um motivo para que o critiques? Mais perde ele que ti, pois já suportou muitos sofrimentos. O Amor não consente que se arrependa: ainda que isso lhe custe ser queimado vivo, untado com gordura, não poderia impedir de se enamorar. Boa senhora, que proveito terás em lhe causar aborrecimentos e pesares? Haveis iniciado a guerra contra ele porque o teme, o aprecia e porque ele está sob teu poder? Se o Amor o tem preso em seus laços e faz com que o obedeça, por isso o odeias? Deverias conceder-lhe teu perdão como se fosse um orgulhoso insolente. É cortesia socorrer a quem está abaixo de nós; tem o coração duro aquele que não se rende às súplicas.
Piedade acrescentou:
– É certo que a humanidade vence a cólera e quando dura muito tempo, torna-se malvada e cruel. Por isso, rogo-te, Rejeição, para que deponhas tua guerra com o infeliz que está ali se enfraquecendo por não ter sido seduzido em nenhum momento pelo Amor. Parece-me que o castigas mais que o devido: ele está suportando uma dura penitência desde que lhe privaste de Doce Abrigo, que era a companhia que ele mais desejava. Antes, estava perturbado, mas agora sua perturbação se duplicou. Agora se dá por morto e se considera desprotegido, pois lhe falta Doce Abrigo. Porque lhe causas tristeza, quando o Amor já o maltrata? Ele suporta tantos sofrimentos que não necessita de outros piores: não o faças padecer, por favor. Não continue maltratando-o, pois nada ganhas com isso. Permita que Doce Abrigo lhe ofereça alguma graça a partir de agora; misericórdia para o pecador. Já que a Franqueza está de acordo, rogo-te e peço-te para que não rejeites seu pedido: demasiado duro e cruel é quem se nega a fazer algo por nós duas.
Rejeição não pôde resistir por mais tempo e teve que ceder:
– Senhoras – disse – não me atrevo a me opor a vós neste assunto, pois seria vilania. Aceito que tenhais a companhia de Doce Abrigo, já que assim o desejais, não me oporei.
Então, Franqueza, a do bem falar, foi a Doce Abrigo e lhe disse com cortesia:
– Doce Abrigo, por muito tempo te mantiveste afastado deste amante, sem se dignar sequer a olhá-lo. Desde quando não o visitas, está pensativo e triste. Procura alegrá-lo e cumprir sua vontade a partir de agora, se queres gozar do meu amor. Eu e Piedade convencemos Rejeição, que os mantinha afastado.
– Farei o que queres – contestou – pois é legítimo, já que Rejeição concedeu.
Então Franqueza o enviou para ficar a meu lado. A princípio, Doce Abrigo me saudou com afabilidade e, mostrando-me o melhor semblante até então, pegou-me pela mão para acompanhá-lo para dentro da cerca que Rejeição tinha proibido.
Desse modo, me senti com permissão para andar por todas as partes. Parecia que tinha passado do grande Inferno ao Paraíso, pois Doce Abrigo me levava de um lado para outro, esforçando-se para cumprir meus desejos.
Então, quando vi a rosa, tive a impressão de que havia engordado e crescido um pouco, e agradava-me ver que não se havia aberto tanto e descoberto seu coração cor grená, pelo contrário, ele se mantinha ainda fechado entre as abundantes pétalas da flor que se erguiam ao seu redor, impedindo que se visse seu interior. Deus a abençoe! Para minha grande admiração, aberta assim, era muito mais formosa e vermelha que antes. O Amor me atou enquanto contemplava como havia se embelezado, e apertou suas amarras quanto mais me deleitava nessa visão.
Estive muito tempo naquele lugar, pois havia encontrado afeto e companheirismo em Doce Abrigo. Quando já estava certo que ele não me negaria nem seu consolo, nem seu serviço, lhe pedi uma coisa que deve ser relembrada:
– Senhor – eu disse – tu sabes que tenho grande desejo de obter um precioso beijo da rosa que cheira tão suavemente; se não o desagradar, pedir-lhe-ia que me concedêsses isso como um dom. Senhor, por Deus, diz-me se parece correto que eu a beije, pois não o farei se não lhe aprouver.
– Amigo – e que Deus me ajude – se a Castidade não me odiasse por isso, eu não o impediria. Porém, não me atrevo a conseguir esse dom, pois não quero cometer nenhuma falta contra a Castidade. Ela sempre me proibiu de dar permissão aos enamorados para se beijarem, por mais que suplicassem, pois quem consegue um beijo dificilmente se conforma, sempre deseja mais. Saibas que aquele a quem se concede um beijo, obtém o melhor e o mais agradável do botim, deixando seu sinal para o resto.
Quando ouvi sua resposta não quis insistir mais, pois temia que se aborrecesse. Não se deve encurralar demais a ninguém, nem fustigar além de sua vontade. Já sabeis que não se corta o carvalho ao primeiro golpe, não se obtém o vinho do lagar enquanto a prensa aperta. Contudo, demorava muito a permissão para dar o beijo que eu tanto desejava. Vênus, que mantém incessante guerra contra a Castidade, veio ao meu socorro. Ela é a mãe do Deus do Amor, quem auxilia a muitos enamorados. Em sua mão direita, trazia uma tocha ardente, cujo fogo tem incendiado numerosas damas. Era tão bela e elegante que parecia uma deusa ou fada. Pelos ricos adornos que trazia, um simples olhar possibilitaria ver que ela não vivia como uma monja. Não vou descrever agora o seu vestido, nem seu véu, nem suas tranças douradas, nem o broche ou a cinta, pois passaria muito tempo nisso. Basta que saibas que ela era muito elegante e que não demonstrava o menor orgulho.
Vênus se dirigiu até Doce Abrigo e começou a dizer-lhe:
– Bom senhor, porque colocas tantas dificuldades para que este enamorado obtenha um doce beijo? Não deveria impedi-lo, pois bem sabes que ele serve e ama com lealdade, e que é suficientemente belo para ser amado. Vê como é elegante, vê sua formosura e contempla como é gentil, doce e sincero com todas as gentes. Além disso, não é velho, mas muito jovem, o que é mais apreciável. Não há dama ou senhora de castelo que eu não teria por vilã se lhe colocasse dificuldades. Não há nada em seu corpo que deva mudar. Se conseguires para ele esse beijo, estará bem empregado, pois a mim parece ter hálito doce. Ademais, sua boca não é feia, pelo contrário, dá a impressão de que foi feita justamente para agradar e provar, pois seus lábios são vermelhos e seus dentes são tão brancos e limpos que não se vê neles nem limo, nem sujeira. Creio que é justo que lhe concedas um beijo.
– Consegue, dá-me atenção, pois quanto mais espero, mais tempo perco, tem certeza.
Sem mais demora, Doce Abrigo, que sentiu o sopro abrasador da tocha, concedeu-me um beijo como dom. Isso foi o que conseguiram Vênus e sua tocha. Assim, não me detive e rapidamente tomei da rosa um beijo doce e saboroso. Que ninguém pergunte se me alegrei, pois entrou em meu corpo um aroma que conseguiu expulsar minhas dores e adoçar os sofrimentos que o Amor me causava e que costumavam ser amargos. Nunca estive tão à vontade: cura-se bem quem beija uma flor semelhante, tão agradável e perfumada. Por mais dores que sofra, toda vez que a relembrar, voltarei a transbordar de alegria e de gozo. E, no entanto, tenho padecido muitos aborrecimentos e muitas más noites depois de tê-la beijado. O mar nunca está tão calmo que não se altere com um pouco de vento, pois o Amor muda com facilidade: é o mesmo que acaricia e que espeta, pois nunca se mantém fixo em um ponto.
Agora vou lhes contar como tive que enfrentar a Vergonha, que me atormentou com grande crueldade; e contar-vos-ei como construíram fortes e resistentes a muralha e a torre que o Amor depois tomou com esforço. Quero continuar com toda a história e não sinto preguiça em escrevê-la, porque penso que servirá de elogio à formosa – que Deus a proteja – que, quando quiser, me concederá o galardão melhor que ninguém.
Má Língua, aquela que pensa e advinha o que ocorre no coração de muitos enamorados e difunde todo o mal que sabe, se deu conta do afeto que Doce Abrigo me tinha. Como não podia se calar, pois era filha de uma velha malvada – com quem se parecia – de boca fedorenta e língua afiada e amarga, começou a acusar-me e a dizer que tinha certeza que entre Doce Abrigo e eu havia maus acordos. A odiosa disse tantas loucuras de mim e do filho da Cortesia que, por fim, conseguiu que o Ciúme despertasse. Fazendo um grande barulho, esse se levantou ao ouvir tão perversas palavras. Logo depois, correu enlouquecido até Doce Abrigo, pois estava cheio de cólera, e começou a atacá-lo, dizendo:
– Inútil, porque te faltas o bom sentido a ponto de ficar bem com um jovem do qual tenho más suspeitas? Vejo que facilmente acreditas nas adulações de qualquer moço. Não posso continuar confiando em ti; farei com que te prendam ou te tranquem em uma torre, pois não vejo outra solução. A Vergonha se afastou demais de ti sem se esforçar em te vigiar, e te ter preso por perto; parece que presta má ajuda à Castidade deixando que um jovenzinho desenfreado entre em nosso reino para afrontar-nos, a ela e a mim.
Doce Abrigo não soube o que contestar e teria se escondido se o Ciúme não o tivesse encontrado ali comigo em plena ação. Quando vi que aquela odiosa pessoa vinha disposta a discutir e repreender, fugi, pois não gosto de discussões.
A Vergonha avançou um pouco, temendo ter cometido alguma falta. Mostrou-se humilde e simples: trazia um véu ao invés de uma touca, como se fosse uma monja de uma abadia. Como estava assustada, começou a falar em voz baixa:
– Por Deus, não acredites na maldizente Má Língua, pois é uma mulher que mente com facilidade; assim enganou a numerosos homens. Ela agora acusou Doce Abrigo, mas ele não é sua primeira vítima, pois Má Língua está acostumada a contar falsas notícias de jovens e de donzelas. Sem dúvida, e isso não é mentira, Doce Abrigo tem uma correia muito larga e foi-lhe permitido trazer aqui gentes alheias. Mas certamente não creio que tenha feito isso com má intenção ou como se fosse loucura. A verdade é que Cortesia, que é sua mãe, lhe ensina a conhecer sem medo a diferentes gentes, pois ela mesma nunca amou pessoas fechadas.
– Doce Abrigo não tem outro defeito nem outra falta a não ser a sua jovialidade, pois se diverte e fala com as gentes. Sem dúvida tem sido muito condescendente na hora de custodiá-lo e de dar-lhe conselhos. Por isso te peço perdão; sinto se tenho sido muito lenta em obrigá-lo a fazer o bem; arrependo-me de meu erro e, a partir de agora, me esforçarei para cuidar de Doce Abrigo, não vou deixar isso para depois.
– Vergonha, Vergonha – disse o Ciúme – temo que me atraiçoes, pois Desenfreio tem visto como aumentou seu poder e assim logo poderá me envergonhar.
– Meus temores não devem surpreender, pois a Luxúria reina por todas as partes e a sua influência não pára de crescer; a Castidade não se encontra a salvo nem nas abadias, nem nos claustros. Por isso, vou fazer com que estes roseirais e estas rosas fiquem escondidas dentro de uma nova muralha; não vou deixá-las desprotegidas, pois não confio mais em vossa vigilância, já que pude ver e sei que mesmo com uma melhor custódia as coisas se perdem; antes que o ano termine me terão por estúpido se eu não tomar essas precauções. É importante que me preocupe. Vou fechar o caminho àqueles que vierem espiar minhas rosas para me afrontar. Não terei preguiça em construir uma fortificação que rodeie os roseirais. No meio, levantarei uma torre onde Doce Abrigo ficará prisioneiro, pois temo seus erros. Vou vigiá-lo tão bem que ele não poderá sair para buscar a companhia desses jovenzinhos que, para causar-me todo tipo de afrontas, lhe dirigem palavras aduladoras. Esses maliciosos viram que era muito fácil enganar. Se viver, quero estar seguro que em má hora os recebi com boa cara.
Ao dizer tais palavras, o Medo se aproximou com muito temor; porém estava tão assustado com o que disse Ciúme que não se atreveu a pronunciar uma só palavra, pois sabia que ele estava encolerizado. Colocou-se de pé e se retirou lentamente; enquanto isso, Ciúme foi embora, deixando a sós a Vergonha e o Medo, que tremiam até o cú. Medo, cabisbaixo disse à sua prima:
– Vergonha, me pesa ouvir uma reprimenda por algo que não podemos solucionar. Muitas vezes passam abril e maio sem que tenhamos reprovado nada. No entanto, Ciúme, que desconfia agora de nós, nos despreza e nos insulta. Vamos em busca de Rejeição para lhe explicarmos tudo e lhe dizermos que cometeu uma falta grave por não ter se aplicado com mais esmero na perfeita vigilância deste lugar; e por ter permitido que Doce Abrigo fizesse sua vontade sem nenhum tipo de impedimento. Por isso, terá que corrigir-se ou se verá obrigada a abandonar esta terra, pois não poderia resistir à guerra de Ciúme, nem à sua fúria, se chega a ter-lhe ódio.
A Vergonha e o Medo então decidiram assim: foram em busca de Rejeição e a encontraram deitada sob uma acácia branca. Como almofada, tinha embaixo da cabeça um monte de erva, e já começava a dormir. Vergonha a despertou, dizendo-lhe insultos e ataques:
– Com estás dormindo a essa hora, desgraçada? Louco está quem acredita que irás guardar as rosas e seus brotos melhor do que se fossem rabos de cordeiro. És folgada e covarde, quando deveria ser feroz e capaz de maltratar todo mundo. Loucura fez com que concedesses permissão a Doce Abrigo para colocar aqui o homem que nos tem afrontado. E estás dormindo enquanto nós temos que suportar censuras até não podermos mais! Estavas deitado há pouco? Levanta de imediato e tapa todos os buracos da cerca; não tenhas compaixão, pois não cai bem para o teu nome tudo o que não se refere às moléstias; deixai para Doce Abrigo a amabilidade e a doçura e ficai com a felonia e a dureza, com os insultos e os ultrajes. Desatina o vilão que se comporta com cortesia; pelo menos tenho ouvido dizer isso em um refrão, e de nenhuma maneira se pode converter um falcão de caça em um gavião. Quando são amáveis, são considerados estúpidos. Assim, queres continuar agradando às gentes com tua bondade e teus bons serviços? Isso se deve à tua preguiça. Desse modo ganharás em todas as partes a fama de covarde, de débil e de que acreditas nos mentirosos.
A seguir, o Medo tomou a palavra:
– Certamente, Rejeição, me estranha que não te mantenhas bem desperto para guardar o que deves. Logo serás reprovado se a cólera do Ciúme aumentar, pois ele costuma ser feroz, cruel e sempre disposto a repreender as gentes. Hoje ele se ocupou da Vergonha e, com suas ameaças, conseguiu que Doce Abrigo fosse expulso do lugar e jurou que não tardará em fazer que o emparedem vivo. Tudo isso aconteceu por causa de tua maldade, pois em vós não falta disposição para criar dificuldades. Penso que te tem faltado valor, e isso aconteceu em má hora, pois recebereis afrontas e desonras, se conheço bem o Ciúme.
O vilão retirou seu capuz, esfregou os olhos, se espreguiçou, torceu o nariz, piscou os olhos, se encheu de cólera e se aborreceu ao ouvir as ameaças:
– Com motivo me encho de ira, pois me considerais vencido. Já vivi em demasia se não sou mais capaz de vigiar o jardim! Que me queime vivo se alguém voltar a entrar aqui! Tenho meu coração no peito repleto de cólera, porque houve quem pusesse seus pés aqui; preferiria ver-me atravessado por duas lanças. Agora me dou conta de que certamente me comportei como um louco. Estou disposto a reparar isso com a vossa ajuda. Não voltarei a mostrar-me preguiçoso na hora de tomar conta dessa cerca; se pegar alguém aqui dentro, é melhor que ele esteja em Pavia. Nunca mais, para o resto de minha vida, pensarão que sou preguiçoso; isso vos juro e prometo.
A seguir, Rejeição se pôs de pé. Parecia estar enfadada; pegou um pedaço de pau e foi procurar os buracos na cerca, os caminhos ou as fendas que devia tapar. Foi a partir de então que a situação mudou, pois Rejeição ficou pior e mais cruel do que antes. Senti-me morto por tê-la encolerizado dessa maneira, pois nunca mais voltarei a ter a tranqüilidade para contemplar o que quero. Triste está o coração em meu peito pela desgraça de Doce Abrigo; todos os meus membros se estremecem ao lembrar da rosa que de perto contemplava quando queria. E quando me lembro do beijo que inundou meu corpo com um perfume mais doce que o bálsamo, sinto que falta pouco para desfalecer, pois ainda mantenho trancado no coração o doce sabor da rosa. Sabei que quando me vem à mente a idéia de que devo renunciar à rosa, tenho vontade de morrer, de não continuar vivendo. Parece-me que em má hora toquei a rosa com meu rosto, com meus olhos e com a minha boca, se o Amor não me permitir logo voltar a tocá-la outra vez; provei seu aroma e, por isso, é maior o desejo que incendeia e queima meu coração. Agora voltarão os prantos e os suspiros, os longos pensamentos em vigília, os tremores, as queixas e as lamentações; terei muitos males e de todos os tipos, pois caí em um inferno. Maldita seja a Má Língua! Sua língua desleal e falsa é a causa de minha situação.
Já é hora de contar o que fez o Ciúme, impulsionado por suas suspeitas. Em toda aquela terra não restou um construtor ou peão que não fosse convocado. Assim, ele ordenou que começassem a construir fossas ao redor dos roseirais; custaram muito dinheiro, pois eram largas e profundas. Os construtores levantaram junto às fossas uma muralha com blocos bem cortados, cimentada não sobre escombros, mas sobre uma rocha dura. A base se inclinava de forma adequada até o pé das fossas e depois crescia reta, para cima, de modo que a obra era muito mais resistente. A muralha estava tão bem traçada que formava um quadrado perfeito; cada um de seus lados media cem toesas, e o conjunto era igual tanto na largura quanto na profundidade. Os torreões estavam uns ao lado dos outros, com numerosas ameias, e estavam cheios de blocos talhados de pedra. Nos quatro cantos havia outros torreões difíceis de tomar. Havia ainda quatro portas protegidas por muros largos e altos; uma estava na fachada e era fácil de defender, duas dos lados e outra na parte traseira. Nenhuma dessas temeria os possíveis golpes de uma catapulta. Tinham ancinho para causar mais danos aos de fora, para prendê-los e detê-los caso se atrevessem a avançar.
No meio do recinto, os que souberam fazê-lo construíram uma torre com maestria; seria impossível uma mais formosa, maior, mais profunda ou mais alta. Seus muros não cederiam diante de nenhum tipo de engenho que lançasse pedras, pois mesclaram suas bases com vinagre forte e com cal viva. A pedra da cimentação era uma rocha maciça tão dura como o diamante. A torre era completamente redonda; não havia existido no mundo outra mais rica nem melhor dividida por dentro. Por fora, estava rodeada por uma vala, de forma que entre a vala e a torre estavam plantadas os abundantes roseirais com suas numerosas rosas.
No castelo havia catapultas e outros tipos de engenhos e máquinas de guerra. Viam-se os manganéis por cima das ameias, e nas fendas dos muros havia incontáveis balestras fixas as quais não havia armadura que pudesse resistir. Aquele que se aproximasse da muralha cometeria uma grande estupidez.
Além dos fossos, havia barreiras construídas com fortes muros e ameias baixas, de modo que os cavalos não podiam se aproximar a galope até os fossos sem que antes acontecesse um combate.
Figura 21
Essa iluminura representa o inexpugnável castelo construído pelo Ciúme para aprisionar Doce Abrigo. Como narra o texto, o castelo é protegido pela Rejeição (o deselegante camponês à esquerda, com as chaves na mão direita), a Vergonha (a recatada dama na parte superior da iluminura), o Medo (a dama da parte inferior, igualmente com grande chaves na mão direita) e a Má Língua (à direita, entoando um som com um chifre). Ao centro, outra muralha interna protege o castelo. Ali se encontra Doce Abrigo, vigiado por uma velha (à direita). Do lado de fora (acima, à direita), o Ciúme (representado por uma dama) guarda sua construção e aponta para Doce Abrigo, como a indicar seu lastimoso estado. Por fim, reparem que os rubros roseiras estão nos jardins que cercam o castelo, dentro da segunda muralha.
O Ciúme colocou uma guarnição nesse castelo do qual estou falando. Parece-me que Rejeição tinha a chave da primeira porta, que se abria na parte oriental. Com ele havia – conforme creio – pelo menos trinta servidores. A Vergonha guardava a porta do Meio-Dia; era prudente e tinha numerosos criados dispostos a cumprir suas vontades. O Medo mandou um grande exército e estava encarregado de vigiar a outra porta, que ficava à esquerda, pelo lado do vento norte. O Medo não se encontraria seguro se a porta não estivesse fechada com chave; ele não a abria muito, pois se assustava quando soprava um pouco de vento ou quando saltavam um par de grilos.
A Má Língua – que Deus a maldiga! – tinha mercenários da Normandia. Ela custodiava a porta traseira e não parava de ir e vir às outras três. Ao interar-se de que tinha que fazer a guarda noturna, ao entardecer ela subiu as ameias para afinar as trombetas, as trompas e os chifres; algumas vezes entoava canções, descorts e composições novas da moda, imitando as gaitas da Cornualha; outras vezes – acompanhando-se com a flauta – disse que nunca encontrou uma mulher honesta: “não há nenhuma que não ria ao ouvir falar de excessos: esta é uma puta, a outra se maquia, aquela olha luxuriosamente; uma é vilã, outra é louca e outra fala demais”.
Má Língua não perdoa a ninguém, pois encontra algum defeito em todas.
Entretanto, o Ciúme – que Deus o confunda! – protegia a torre redonda e nela colocava seus amigos mais íntimos, até formar uma guarnição numerosa.
Doce Abrigo estava trancado, prisioneiro no alto da torre, cuja porta estava tão bem trancada que ele não poderia sair. Uma velha – que Deus a humilhe! – estava com ele, vigiando-o e não fazendo outra coisa além de espiar para que ele não se comportasse de forma louca. Ninguém poderia enganá-la fazendo sinais ou piscando os olhos, pois não havia artimanha que ela não conhecesse, já que em sua juventude teve a parte que lhe correspondia dos bens e dos pesares que o Amor divide entre suas gentes.
Doce Abrigo permanecia em silêncio e atento, temendo a velha, e não se atrevia a mover-se, pois ela poderia pensar que se tratava de uma conduta louca, já que conhecia bem a antiga dança.
Enquanto isso, o Ciúme se apoderou de Doce Abrigo e o prendeu, ficando assim mais seguro. O castelo o tranqüilizou, já que lhe parecia bem forte e não o preocupava mais a ida de preguiçosos que queriam roubar rosas ou botões; os roseirais estavam bem protegidos e ele se sentia tranqüilo quando dormia ou quando velava.
De minha parte, eu, que estava fora da muralha, havia me entregue ao pranto e à tristeza; qualquer um que se inteirasse da vida que eu levava se compadeceria. O Amor vendeu caro os bens que havia me emprestado. Eu pensava tê-los comprado, mas ele voltou a vendê-los para mim e, pela alegria que eu perdi, minha dor era maior do que se nunca a tivesse alcançado. Que mais posso contar-vos? Parecia-me com o camponês que jogava a semente no campo e sentia uma grande alegria quando ela começava a crescer como uma erva forte e formosa, mas depois, antes de colher um feixe, uma má nuvem que surgia quando as espigas deveriam florescer, fazia perder tudo e o frustrava, matando o grão e acabando com as esperanças que o camponês tinha.
Da mesma forma, eu temia ter perdido minhas ilusões e esperanças; o Amor havia me colocado em um lugar tão alto que eu havia começado a contar meus segredos a Doce Abrigo, que estava disposto a aceitar meus jogos. Mas o Amor é tão caprichoso que me privou de tudo em um momento, quando eu pensava ter triunfado.
O mesmo ocorre com a Fortuna, pois ela enche o coração das gentes de amargura e logo depois os acaricia e afaga; rapidamente muda seu aspecto: ora ri, ora está triste. Ela tem uma roda que gira e, quando assim o deseja, coloca acima, na parte mais alta, aquele que estava embaixo e, com uma volta, faz com que caia no barro aquele que estava acima na roda. E eu fui derrubado! Em má hora vi os muros e as fossas que não me atrevia passar – e nem poderia fazê-lo. Não tive nenhuma alegria desde que Doce Abrigo foi encarcerado, pois todo o meu gozo e toda a minha cura descansavam nele e na rosa que se encontrava presa entre os muros; seria necessário que ela saísse da torre se o Amor quisesse que eu fosse curado, pois de nenhum outro desejo receberia honra, bem, saúde e alegria.
– Ai, Doce Abrigo, meu doce amigo! Ainda que estejas prisioneiro, ao menos faz com que teu coração continue sendo-me favorável e não permitas por nada desse mundo que o selvagem Ciúme faça de ti seu servidor, como tem feito com teu corpo; se ele o castiga por fora, tem por dentro um coração de diamante para fazer frente a seus tormentos. Se o corpo cai prisioneiro, ao menos procura que teu coração me ame, já que o coração nobre não deixa de amar, mesmo que receba golpes ou seja desprezado.
Se o Ciúme se mostra duro contigo, causando-te aflições e moléstias, enfada-te com ele; das penas que te causa, vinga-te pensando, já que não podes fazer outra coisa. Se obrares assim, estarei satisfeito. Porém, me preocupa que não faças dessa maneira, pois talvez estejas aborrecido comigo, pois te encarceraram por minha culpa. Contudo, não foi por uma falta que eu tenha cometido contra ti, pois não te contei nada que tivesse que manter em silêncio. Assim, que Deus me ajude, pois tua desgraça me pesa mais que a ti mesmo, já que estou sofrendo uma penitência maior que tudo. Pouco falta para eu me desmanchar de tristeza quando recordo minha grande e evidente perda. Sinto tanto medo e estou tão incomodado que penso que isso me causará a morte. Não devo estar assustado em saber que os invejosos, os traidores e os falsos estão desejando me prejudicar?
– Ah, Doce Abrigo, bem sei que querem nos enganar – e talvez já tenham conseguido. Não sei como estão as coisas, mas estou muito aflito, pois temo que tenhas se esquecido de mim e isso me causa dor e tristeza. Não há nada que possa me consolar se perder teu afeto, pois em ninguém mais confio.
Fim da Primeira parte de O Romance da Rosa, escrita por Guilherme de Lorris
continua...
Fonte:ricardocosta.com
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