A Grande Sopa
por Taunay Daniel
Coloquemos  num grande caldeirão de ferro, contendo bastante água pura de mina, um  pouco de praticamente tudo o que é de origem vegetal (todos orgânicos):  inhame, cenoura, cará, repolho, salsa, vagem, aipo, mandioca, alho-poró,  feijão, cebola, batata, alecrim, couve, quiabo, brócolis, chuchu,  abóbora, nabo, manjericão, beterraba, alho, tomate, etc, etc, etc…
Cada novo ingrediente que vamos  introduzindo no caldeirão tem seu próprio aroma, sua textura, sua cor e  seu sabor. Por fim, acrescentamos um pouco de sal (muito pouco) para  funcionar como uma espécie de animador e incentivador de todas essas  qualidades.
O fogo põe-se a crepitar sob a base  espessa do caldeirão. Decorrido algum tempo, começa a haver uma certa  tremulação geral, um estado de excitação, um frenesi: a água borbulha e  os vegetais se inquietam.
Quanto mais a temperatura aumenta, mais a  energia circula entre os participantes do cozimento geral, e quando a  energia circula, os intercâmbios tornam-se inevitáveis. Um pouco do  sabor do alecrim penetra no inhame que se torna, então, “alecrinizado”.  Um pouco da cor do tomate impregna a mandioca que fica, digamos,  levemente “tomatizada”. Do inhame alecrinizado despregam-se algumas  partículas que acabam se encontrando com as da batata “arrepolhada”.  Desse modo, todas as texturas, cores e sabores originais acabam cedendo  algo de si e contribuem para a composição do caldo grosso que é a  maravilhosa sopa que se anuncia.
Como no início do cozimento pusemos  muita água e mantivemos o fogo brando, há muito tempo ainda pela frente  até que tudo isso fique pronto (na verdade, é difícil podermos  determinar com precisão esse momento final). De qualquer modo, por  precaução, mantenhamos uma grande chaleira de reserva com água em  aquecimento para que agreguemos, de quando em quando, um pouquinho desse  líquido sagrado ao caldo, caso ele se torne demasiadamente denso. É  absolutamente necessário que prolonguemos ao máximo o tempo de  cozimento. Atenção: esta sopa não está sendo preparada para ser comida,  embora não haja nenhuma razão para não fazê-lo. Seguramente ela ficará  saborosa, não há nada que possa nos fazer suspeitar do contrário.
O que se quer é que o cozimento sirva  como uma espécie de instrumento para estimular nossas reflexões sobre a  vida, o amor, a morte e o conhecimento. Olhemos, então, com atenção para  a sopa que está se fazendo lentamente. É bem possível que o Universo no  qual estamos imersos seja uma espécie de enorme caldeirão borbulhante,  como este à nossa frente, e que cada um de nós seja como um dos vegetais  dentro da sopa. Hoje em dia, diga-se de passagem, é bastante comum  ouvirmos falar na hipótese de que o Universo inteiro é um único ser vivo  (os pensadores mais criativos e atrevidos são muito inclinados a pensar  assim) e não, como se vinha pensando antes, que ele apenas contém seres  vivos (uns aqui, outros acolá).
Se o Universo for mesmo assim, podemos perguntar o que significa “conhecer” e como isto acontece?
Eu sou, digamos, como um vegetal dentro  da sopa geral. Estou imerso desde sempre e participo junto com todos os  outros vegetais dessa dança fervilhante. Isso vale também para os meus  ancestrais e os ancestrais dos ancestrais, que podem ser minúsculas  moléculas orgânicas ou mesmo inorgânicas (aliás, essa diferença entre  “ter” e “não ter” vida vem sendo posta em questão pelas pesquisas e  especulações atuais mais avançadas). Se eu sou, por exemplo, um inhame,  então “conhecer” é como alecrinizar-me, tomatizar-me, cenourizar-me.  Deixar-me, enfim, impregnar pelos outros aromas, cores e sabores.
Os mais resistentes a essa idéia dirão:  mas, se é assim, eu deixo de ser inhame, que é o que “eu sou”! Os mais  flexíveis responderão: nunca se esqueça de que você não foi sempre  inhame, que antes de ser inhame você foi terra e, além disso, do estado  terra para o estado inhame você “foi sendo”, no percurso, muita coisa.  Conhecer é, então, transformar-se. É alquimia pura. É doar cores, aromas  e texturas, mas também e ao mesmo tempo, recebê-los sem cessar.  Conhecer é não resistir, é perder sempre, para ganhar sempre mais.  Nenhum conhecimento está fora de nós, ele só se consuma quando nos  impregnamos daquilo que recebemos da sopa dançante. E, no mesmo instante  em que o fazemos, já não somos mais os mesmos: morremos para  imediatamente renascer. Entretanto, para receber é preciso haver espaço.  Por isso temos que doar.
Não há como se manter inalterado onde  tudo fervilha e flui. Podemos tentar permanecer, com todas as forças de  que dispomos, numa única posição. Congelar o ego, defender ardorosamente  um único ponto de vista, uma suposta verdade. Tentar manter o mesmo  aroma, a mesma cor e o mesmo sabor. Entretanto, quando fazemos isso, nós  encruamos. É aquele inhame que não cozinha, fica duro. Mas o fogo é  brando e o tempo é vasto! Mesmo os mais petrificados irão cozinhar  inevitavelmente. Esse é o destino dos componentes do caldeirão: doar  tanto e receber tanto que todas as identidades se dissolverão, um dia,  num único caldo espesso de conhecimento puro. Todas as coisas  aparentemente separadas irão se tornar, enfim, a mesma e única coisa: a  Grande Sopa.
Olhemos de novo para o caldeirão onde o  cozimento segue seu curso. Essa transmutação incessante que borbulha  diante de nós vai revelando algo que já poderíamos ter suspeitado antes:  conhecimento é um ato de amor. Amor é a energia que entrelaça e vincula  todas as coisas. Que faz tudo dentro do caldeirão, dançar e transmutar.  Para intercambiar cores, aromas e sabores é preciso estar aberto,  receptivo, disponível atento, flexível. É preciso sintonizar,  sincronizar, concordar, conceder, confiar, consentir. Desvestir para  revestir. Decompor para recompor. Tudo isso são atributos do amor. Quem  resiste encrua, quem aceita cozinha. Os encruados ficam estagnados por  um tempo indeterminado. Os bem cozidos integram-se na evolução da sopa.  Ganham um novo sabor, um novo estado de consciência.
Prof. Dr. Taunay Daniel
Doutor em Multimeios pelo Instituto de Artes da UNICAMP.
Especializou-se em Epistemologia da Ciência pela Universidad de Belgrano, Buenos Aires, Argentina. É bacharel em Filosofia pela PUC de São Paulo. Professor universitário de Filosofia, de Epistemologia e de Comunicação Audiovisual. É docente na UNIPAZ, na UNILUZ e realiza periodicamente cursos livres, palestras, workshops e seminários sobre “Filosofia, Ciência, Arte e Espiritualidade” em várias instituições públicas e privadas. Diretor, roteirista e produtor de filmes e vídeos para educação, cultura, ciência e meio ambiente.
  
Doutor em Multimeios pelo Instituto de Artes da UNICAMP.
Especializou-se em Epistemologia da Ciência pela Universidad de Belgrano, Buenos Aires, Argentina. É bacharel em Filosofia pela PUC de São Paulo. Professor universitário de Filosofia, de Epistemologia e de Comunicação Audiovisual. É docente na UNIPAZ, na UNILUZ e realiza periodicamente cursos livres, palestras, workshops e seminários sobre “Filosofia, Ciência, Arte e Espiritualidade” em várias instituições públicas e privadas. Diretor, roteirista e produtor de filmes e vídeos para educação, cultura, ciência e meio ambiente.
Contato: taunaydaniel@terra.com.br
Fonte:jordancampos.com.br

 
					
 
 

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