Esquecimento

(Foto: jspad)

por Eduardo Lara Resende

Meu amigo me enviara, conforme prometera, uma caixa pelos correios. Dentro, um exemplar de livro editado na segunda década do século passado. “Ressuscite-o, por favor”, ele me pedira em email, depois de tomar conhecimento da minha então efervescente faceta de reformador perseverante. Fosse gente ou animal, o volume estaria exalando o último suspiro, tal a extensão dos danos. Retirei-o com cuidado, e levantando a capa, dei com um pedaço de papel amarelado onde se lia: “Devolver o paletó do Almeida”.

Eu já encontrara algumas curiosidades metidas entre páginas de livros: receitas culinárias, volantes de loteria (da época em que as apostas eram feitas em cartões perfurados manualmente), palha para cigarros e até notas de dinheiro do tempo do Império – tudo cuidadosamente embalado e devolvido aos respectivos donos. Mas aquele bilhete, redigido em letra desenhada e levemente inclinada para a direita, além do cunho pessoal, atestava a generosidade do Almeida em ceder seu paletó por empréstimo. Também por ele não se poderia duvidar da disposição do autor em restituí-lo ao dono.

O quadriculado do papel que encapava o livro me instigou a imaginar que o tal paletó tenha sido confeccionado em tecido xadrez, discreto e elegante. Quanto mais eu tentava calar indagações, mais elas resistiam. Que espécie de celebração teria levado o autor do bilhete a pedir emprestado um paletó? Além de generoso, seria o Almeida homem de alguma posse? Ou apenas emprestara o único paletó por não haver previsão de usá-lo naqueles dias? A amizade entre ambos permitira a um a liberdade de fazer o pedido, e ao outro, o de não sentir-se constrangido em atendê-lo. E se houve um bilhete, o dono do paletó dera ao solicitante todo o tempo que julgasse necessário antes da devolução: usasse o paletó conforme a necessidade que o levara a fazer o pedido. Devolvesse quando fosse oportuno.

Mas, afinal, onde o tempo escondera o paletó, o autor do bilhete e o Almeida? Dou com alternativas através da internet, onde a solidão parece menor e há resposta para quase tudo. Uma compositora xinga melodiosamente um parlamentar, autor de projeto instituindo o auxílio-paletó. Sob o título “Paletó e Chapéu Preto”, um rabino se justifica por ter sido confundido por um amigo que, por sua vez, queixa-se de não ter sido correspondido num cumprimento.

A rede me informa também a medida correta do paletó, “que deve cobrir a curvatura do traseiro, para não arranhar a imagem do profissional”. E tanto mais: há algo sobre paletó de madeira, e notícia de que os japoneses abriram mão do paletó durante um verão, para economizar energia elétrica com o uso do ar condicionado. Um João Nepomuceno junta um paletó, uma preposição e um tatu para extrair desse trio um conto, enquanto um simpático Eude Santos, servindo-se do próprio nome, identifica sua foto a caráter com a singela frase: “Eude Paletó”.

Almeidas pululam na internet. Um Antônio e um Getúlio – este, fotografado caminhando em via pública lá pelos idos de 1940 – foram os primeiros que vi, ambos de paletó. Encontrei Almeidas tocando violão, fotografados no trabalho, casando... Almeidas na praia e metidos em farda de antiga milícia. Mais adiante vi um quinteto de Almeidas – todos também usando paletó. Almeidas rindo, Almeidas pensando, esquiando, jogando futebol. Achei dois Almeidas em luta corporal e um Almeida bispo.

Aquele bilhete me fez notar que a maioria dos Almeidas, cujas imagens vi, não usava paletó. Percebi então que o tempo me tomara por testemunha inútil de um generoso Almeida e seu amigo, que se não chegou a devolver ao dono o paletó, sinceramente desejou fazê-lo.

Conserto o livro e o remeto de volta. Satisfeito, meu cliente providencia pronto pagamento e me devolve o tal bilhete. “Sua anotação veio por engano”, ele explica à parte. E arremata:

- Não vá se esquecer do paletó.

Eduardo Lara Resende é jornalista, escritor e ghost writer.