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Local: São Paulo, SP, Brazil

artista plastica/escultora.poeta.facilitadora em vivências.arte& terapias integrativas.

4 de julho de 2008

Conto - o sapato de salto alto

autora Taís Luso de Carvalho

Filha de diplomata, criada no ‘capricho’, Simone cultivava o hábito de ler antes de dormir; mas coisa leve, algo que não viesse a comprometer o seu sono. Dramas familiares, gente de cuca fundida e com infindáveis problemas existenciais, não faziam parte de suas leituras noturnas. Deixava essas coisas, intrigantes e reflexivas, para ocupar-se durante o dia.Cresceu, virou uma bela mulher e casou-se. Tudo perfeito: maridão educado e culto, porém machista como todo o homem latino.Simone era uma mulher interessante: seus cabelos tinham um tom marrom avermelhado, seu corpo era alto e delgado, olhos amendoados, lábios bem feitos e tinha um elevado senso de humor. Suas leituras preferidas centralizavam-se em André Gide, Kafka, Marguerite Duras, William Faulkner e por aí afora. E na televisão, optava por programas de bom nível: noticiosos, entrevistas, filmes... Assim foi educada.Porém, numa noite chuvosa e fria, Simone resolveu ir para cama mais cedo. E seu corpo foi se apagando pelo cansaço, aconchegado em lençóis perfumados e acariciado por fronhas de rendas. Mas aquele ‘apagão’ não durou muito: inquieta, ligou a televisão e deixou que seus olhos vagassem à procura de algo. Não deu outra: tocou com os costados num canal que exibia um programa inchado de erotismo e pornografia. Seus olhos saltaram das órbitas ao se depararem com cenas extremamente apelativas. Uma linda garota encenava um extenuante bailado de mãos que percorriam um corpo franzino e solitário dando a impressão de explodir de tanto prazer. Aquilo virou um tédio, tendo em vista um homenzarrão em casa, distribuído em um metro e noventa e cinco: o Marcão! E resolveu mudar de canal; não valia a pena continuar.Deparou-se, então, com algo singular: numa mesa - alguns homens com sua masculinidade dentro dos padrões exigidos - discutiam sobre o fetiche dos pés femininos e o poder de um sapato de salto alto.Entusiasmados com o assunto, alguns entrevistados demonstravam, num relato picante, toda sua paixão por pezinhos delicados e sustentados, ainda, por um poderoso salto alto, bico fino...E o relato foi se desenrolando e encantando Simone. Chegou a vez de Nelsão falar: um brutamontes com um tórax de leão fez sua apologia sobre o assunto e revelou que tinha como hábito adormecer, agarradinho, num delicado vermelhinho, salto alto, bico fino... Nelsão, quem diria!Com os olhos esbugalhados e com os ouvidos atentos, a mulher deliciava-se com a entrevista, mas não entendia a razão de tanto alvoroço a ponto de despertar nos mais aficionados tamanho prazer.Muitos deles faziam questão de deixar arrolados os seus depoimentos não escondendo o instinto romântico que possuíam. Simone subiu aos céus. Com grande ansiedade, só pensava em exercitar o seu lado consumista indo à procura de um poderoso salto alto para agradar o seu grande Marcão!Pouco depois falou Valério: meigo, delicado e cheio de trejeitos. Seus cabelos eram mechados e cortados à navalha, repicados. E sua voz revelava altas doses de hormônio feminino, mas nada que afetasse sua beleza; realmente tinha belos traços. Valério tinha uma característica muito peculiar: além de ser obcecado por pés grandes, fortes e ossudos, tinha uma preferência: dedos! Mas não eram dedos comuns que agradavam Valério: o segundo dedo teria de ser bem maior do que o dedão. Valério narrou toda sua história, questionando e filosofando sobre todos os "porquês" dos dedos, numa explicação profundamente filosófica e freudiana.Para Simone a história estava por demais confusa. Aqueles dois dedos disformes... Mas ela jamais ficou sabendo o porquê daquilo: no auge da entrevista, quando Valério começou a relatar a sua obsessão por aqueles dois dedos anormais, Marcos saiu do banho e veio para a cama. Simone, discretamente, mudou de canal; não queria discussões sobre o que deveria ver ou deixar de ver...Marcão deitou-se ao seu lado e colocou os pés em cima de duas almofadas que estavam sobre a cama, com o propósito de auxiliar a circulação de suas pernas. Simone, que nunca havia se detido nos dedos dos pés do marido, levou um susto! E caiu num quaquaraquaquá... Marcos olhou pra mulher, meio intrigado, sem nada entender... Mas não havia jeito de Simone contar. Ela só conseguia apontar para os dedos de Marcos e largava no quaquaraquaquá...Pasma da vida, e com vinte anos de casamento nas costas, a mulher estava atestando de que, o impulsivo Marcão, aquele homenzarrão temperamental, e muitas vezes irritante, tinha exatamente os pés grandes, fortes, ossudos e com aqueles dedos horrendos que fariam a alegria de Valério. Lá do fundo de sua alma brotou uma grande vontade de ‘cutucar’ aquele corpaço tão viril e, por vezes tão grosseiro, e mostrar ao marido o tanto que seus dedos fariam o lindo Valério feliz. Pensou, pensou... Virou-se para o lado e resolveu dormir. Havia muita coisa ‘empoeirada’ guardada no baú, e não seria bom abri-lo...E deixou que a madrugada seguisse mansa, sem interrompê-la.




Tais Luso de Carvalho é Gaúcha

Artista Plástica e Crônista




Colaboradora dessa Coluna:

"essa crônica vida, a crônica nossa de cada dia"

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